4.09.2007

Partir...

Preciso de me afastar, de ir para longe. Não precisa ser o mais longe possível, mas apenas o longe que me permita sentir o peso da distância. Não vou levar telemóvel, relógio ou memórias na bagagem. Gostaria de começar a escrever uma nova história de vida, com tramas interessantes e entusiasmantes. Uma história daquelas que sempre me cativaram quando era miúda, em livros de aventuras, em que a ânsia de descobrir o mistério e a curiosidade cresciam ao virar de cada página. Até este momento tenho muitos livros, que se foram acumulando a par da poeira dos anos. Mas não são tesouros literários, apenas um conjunto de relatos factuais, sem margem para o sonho.

Quando for para aí - nem sei bem onde fica o aí -, apenas tenho a ideia de ficar distante daqui, de ti, de vocês, de mim. Não vou arrastar um passado pesado e um presente carregado de dúvidas. Vou levar apenas a leveza dos sonhos que não custam a criar, daqueles sonhos que nascem com a facilidade de quem imagina o dia seguinte sempre melhor ao que acabou de viver.

Vou levar a mesma postura perante as coisas: observá-las, apreciá-las sobre todos os ângulos e avaliá-las por mero exercício. Mas, quero deixar a atitude de vigilância permanente e preventiva. Não vou tentar prever o que vai acontecer, para me desviar do que me fará sofrer ou do que poderá magoar as pessoas de quem gosto. Vou deixar os velhos medos para trás e vou em frente.

Não vou ter saudades do que fica. Sempre fui desprendida de tudo aquilo que é material. O grande entrave é limitar a importância, o peso e a necessidade dos laços que fui estabelecendo. Porém, neste momento, preciso de voltar a ser nómada! Não quero arrastar uma vida que não vivi e também não quero levar a ilusão de uma vida que ainda me falta viver. As pessoas não são como os gatos, têm apenas uma vida - a vida que é esta! - e eu vou viver a minha.

3 comentários:

  1. Viver a nossa propria vida, e preciso uma grande mestria para vencer as batalhas do dia a dia....

    ;)

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  2. Talvez… exista em todos nós a "Sede de Infinito", que conta/canta Florbela Espanca.

    Ou outro desejo de/do sentir.

    “Limito-me a abrir os braços ao sol / como se estivesse suspenso no fogo / e flutuasse sobre os sentidos”.

    Bom Blog!

    bB.

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    “Perguntai por mim
    onde se bebem os estios.

    Aí hei-de guardar o vinho
    para acalmar a sede
    quando o sol declina
    nos promontórios do tempo.

    Perguntai por mim
    onde se celebram as núpcias
    antes de clarear o dia

    ou onde se adora a ondulação dos corpos.

    Hei-de também aí acender a noite”.

    António Afonso, Inquietude do Vento e dos Sentidos – Poemas

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  3. Nunca soube o seu nome. Julgo que era russo, mas não tenho a certeza. Conheci-o em Paris, nos meus tempos de estudante falido de medicina.
    Todas as tardes jantávamos à mesma mesa, de forma que um dia entabulámos conversa.
    Era um espírito original e interessantíssimo; tinha opiniões bizarras, ideias estranhas – como estranhas eram as suas palavras, extravagantes os seus gestos. Aquele homem parecia-me um mistério. Não me enganava, soube-o mais tarde: era um homem feliz. Não estou divagando: era um homem inteiramente feliz – tão feliz que nada lhe poderia aniquilar a sua felicidade. Eu costumo dizer, até, aos meus amigos que o facto mais singular da minha vida é ter conhecido um homem feliz.
    O mistério, penetrei-o uma noite de chuva – uma noite muito densa, frigidíssima. Eu começara amaldiçoando a vida, e, num tom que lhe não era habitual, o meu homem apoiou:
    - «Tem razão, muita razão! É uma coisa horrível esta vida, tão horrível que se não pode tornar bela! Olhe um homem que tenha tudo: saúde, dinheiro, glória e amor. É-lhe impossível desejar mais, porque possui tudo quanto de formoso existe. Atingiu a máxima ventura, e é um desgraçado. Pois há lá desgraça maior que a impossibilidade de desejar!...
    E creia que não é preciso muito para chegarmos a tamanha miséria. A vida, no fundo, contém tão poucas coisas, é tão pouca variada…Olhe, em todos os campos. Diga-me: ainda se não enjoou das comidas que lhe servem desde que nasceu? Enjoou-se, é fatal: mas nunca as recusou porque é um homem, e não pode nem sabe dominar a vida. Chame os mais belos cozinheiros. Todos lhe darão legumes e carnes – meia dúzia de espécies de vegetais, meia dúzia de espécies de animais. Mesmo, na terra, o que não for animal ou vegetal é sem dúvida mineral…Eis o que demonstra bem a penúria inconcebível da Natureza!
    E quanto aos sentimentos? Descubra-me algum que, no fim de contas, se não reduza a qualquer destes dois: amor ou ódio. E as sensações? Duas também: alegria e dor. Decididamente, na vida, anda tudo aos pares, como os sexos. A propósito: conhece alguma coisa mais desoladora do que isto de só haver dois sexos?
    Mas voltando ao campo material. Arranje-me um divertimento que não seja religião, a arte, o teatro, ou o desporto. Não me arranja asseguro-lhe.
    Com certeza o que existe de melhor na vida é o movimento, porque, caminhando com uma velocidade igual à do tempo, no-lo faz esquecer. Um comboio em marcha é uma máquina de devorar instantes – por isso a coisa mais bela que os homens inventaram.
    Viajar é viver o movimento. Mas, ao cabo de pouco viajarmos, a mesma sensação da monotonidade terrestre nos assalta, bocejantemente nos assalta.
    Por toda a banda o mesmo cenário, os mesmo acessórios: montanhas ou planícies, mares ou pradarias e florestas as mesmas cores: azul, verde e sépia – e nas regiões polares, a brancura cegante, ilimitada, expressão-última da monotonidade. Eu tive um amigo que se suiciou por lhe ser impossível conhecer outras cores, outras paisagens, além das que existem. E eu, no seu caso, teria feito o mesmo.»

    Sorri, ironicamente observando:
    - Não o fez contudo…
    - Ah! Mas por quem me toma?...Eu conheço outras cores, conheço outros panoramas. Eu conheço o que quero! Eu tenho o que quero!

    Fulguravam-lhe os estranhos olhos azuis; chegou-se mais para mim e gritou:

    - Eu não sou como os outros. Eu sou feliz, entenda bem, sou feliz!

    Era tão singular a sua atitude, tão especial o tom da sua voz, que julguei estar ouvindo um louco, e senti um desejo infinito de pôr termo à conversa. Mas não havia pretexto. Tive que ficar, e, a partir deste momento, o homem bizarro, sem deter um instante, fez-me a seguinte confissão:

    - «É bem certo. Eu sou feliz. Nunca dissera a ninguém o meu segredo. Mas hoje, não sei porque, vou -lho contar a si. Ah! Supunha nesse caso que eu vivia assim?...Triste ideia fez de mim! Julguei que me tivesse em melhor conta. Se a vivesse, há muito que teria morrido dela. O meu orgulho é indomável, e o maior vexame que existe é viver a vida. Não me canso de lho gritar: a vida humana é uma coisa impossível – sem variedade, sem originalidade. Eu comparo-a à lista de um restaurante onde os pratos sejam sempre os mesmos, como mesmo aspecto, o mesmo sabor.
    Pois bem eu consegui variar a existência, mas variá-la quotidianamente. Eu não tenho só tudo quanto existe, percebe? Eu tenho também tudo quanto não existe. Aliás, apenas o que não existe é belo. Eu vivo horas que nunca ninguém viveu, horas feitas por mim, voluptuosidades só minhas e viajo em países longínquos, em nações misteriosas que existem para mim, não porque as descobrisse, mas porque as edifiquei. Porque eu edifico tudo. Um dia hei-de mesmo erguer o ideal esculpido em vitória, resplandecendo ouro, ouro não, mas um metal mais áureo do que ouro….
    De resto, é evidente, faltam-me as palavras para lhe exprimir as coisas maravilhosas que não existem…Eu dominei os sonhos. Sonho o que quero. Vivo o que quero. (…)
    Enfim, meu amigo, compreenda-me: Eu sou feliz porque tenho tudo quanto quero e porque nunca esgotarei aquilo que posso querer. Consegui tornar infinito o universo - que todos chamam infinito, mas que é para todos um campo estreito e bem murado.»

    Houve um grande silêncio. Pelo meu cérebro ia um tufão silvando, e as imagens fantásticas que o desconhecido me evocara – rodopiantes, pareciam querer no entanto definir-se em traços mais reais. Mas logo que estavam prestes a fixar-se, desfaziam-se como bolas de sabão…

    O homem disse ainda:

    - «A vida é um lugar comum. Eu soube evitar esse lugar comum. Eis tudo.»

    (…)

    Largo tempo meditei no homem estranho: meses e meses a sua recordação me obcecou perturbadoramente. Quis também fruir o segredo do dominador dos sonhos. Mas embalde. Não os consegui nunca imperar, e breve, renunciei à quimera dourada.

    (…)

    Se o homem dos sonhos era uma figura de sonho, mas, ao mesmo tempo uma criatura real – havia de viver uma vida real. A nossa vida, a minha vida, a vida de todos nós? Impossível. A essa existência odiosa ele confessara-me não poder resistir. Demais, nessa existência, a sua atitude em a duma figura de sonho. Sim, duma figura irreal, indecisa, de feições irreais e indecisas. Logo, o desconhecido maravilhoso não vivia a nossa vida. Mas se a não vivia entretanto surgia vagamente nela, é porque a sonhara.

    E eis como eu pude entrever o infinito: O homem estranho sonhava a vida, vivia o sonho. Nós vivemos o que existe; as coisas belas, só as temos para as sonhar. Enquanto que ele não. Ele derrubara a realidade, condenando-a ao sonho. E vivia o irreal.

    Poeira a ascender quimerizada….
    Asas d’ouro! Asas de ouro!


    Mário de Sá Carneiro, Março de 1913, Paris.


    [mike]

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