Conversas de candeeiros

08:28

É na viela apertada e mal calcetada que moram os dois velhos candeeiros de que hoje vos falo. São do tempo da aristocracia, algo que a sua tez enferrujada não consegue dissimular. Sentem-se velhos e menos inúteis à noite. De dia, lá vão desabafando, lançando previsões, ansiando confirmações que chegarão na noite seguinte.

Ali não passam carros, aliás, eles nem sabem o que isso é, porque aquela é a única residência que conheceram. Das invenções do Homem, em termos de meio de transporte individual, só conhecem o chiar dos travões da única bicicleta que ainda vai passando debaixo dos seus braços esquálidos.

O miúdo, que nela se monta, é neto da velhota viúva e impertinente que mora ao fundo da rua. O facto de viver na cidade grande a maior parte do ano faz com que o garoto desaprenda os conhecimentos da técnica de pedalar. Por isso, recupera-os nas férias grandes. Assim, nos primeiros dias, chega com a pequena bicicleta colorida pela mão. Trata-a quase como o animal de estimação que os pais nunca lhe permitiram.

Fernando Oliveira

Após esse companheirismo inicial, torna-se o dominador da máquina. Às vezes, lá abranda e pára junto dos dois candeeiros para se sentir um explorador. Das rodas ao selim, tenta perceber as ligações. Com o rabo na calçada, dobra os joelhos pejados de cicatrizes e observa, atentamente, a bicicleta desmaiada.

Ali fica, até que a avó grita da varanda, porque “já são horas de comer” e ele lá vai, contrafeito. Afinal, ainda há luz e ele já tem que ir para casa. Os candeeiros percebem que o menino precisa de um sócio de brincadeiras, de um comparsa mais velho que o ensine a jogar ao pião ou ao berlinde. Entre si, conjecturam sobre outras crianças que vivam nas redondezas, mas não se lembraram de ninguém que não tivesse partido.

Lá vem, pela rua abaixo, a apressada executiva, carregada de dossiês e forçando o equilíbrio nos tacões altos. Fala sempre ao telemóvel àquela hora e, mesmo sem querer, os candeeiros ouvem o habitual: “sim querido, hoje não dá. Ainda tive que trazer trabalho para casa”. Escutam também ligeiras nuances. “Hoje tem que ser mais tarde. Ainda tenho muito que fazer. Encontramo-nos depois. Ligo-te quando estiver despachada.” Eles entreolham-se e percebem que ela não se dá conta que carrega a solidão presa àquelas resmas de papel.

Há esse maldito gato malhado a miar pelo beiral da casa em frente. Amaldiçoam-no porque, quando se lembra, ainda tenta fazer-lhes cócegas só para os ver impacientes e rezingões.

O sol apaga-se e eles pontuam o breu. Vem então a rapariga pela mão cansada da mãe. A mulher trabalhou todo o dia, carregou cestos de roupa engomada, limpou retretes, cozinhou para os filhos dos outros e, no fim do dia, vai para casa com a filha que não caminha às direitas e não consegue articular frases com nexo. Os candeeiros sabem que o sorriso que ambas trazem é tão delas como o cordão umbilical que as uniu, fisicamente, nove meses.

Já mais tarde, passa um jovem casal, de mãos dadas, que pára e se beija demoradamente. Os candeeiros gostariam de se desligar para não presenciar aquela cumplicidade. Os namorados continuam o passeio e, ao passar por ali novamente, já não vêm de mãos dadas. Os rostos carregados a controlarem palavras que querem ganhar voz. Param, quase no mesmo sítio do beijo, e começam a discutir por banalidades. Acabam com frases de ciúme em fogo cruzado. Os candeeiros emudecem.

Porém, a tristeza maior é aquela que lhes causa o bêbedo, trôpego, que regressa a casa, depois de mais uma noite em que deixou o amor da mulher e dos três filhos ao relento. Segura-se às paredes e ri-se da sua sorte. Cambaleando, desdenha da vida.

Quando o silêncio se passeia por ali, os dois candeeiros continuam vigilantes, perspectivando os protagonistas do amanhã e desejando que o dia chegue para poderem dormir por fim.

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