Ligo o motor. Espero uns minutos. Observo os números quietos no conta-quilómetros. Esfrego os olhos, ainda preguiçosos. Faço marcha-atrás, enquanto avalio, pelo retrovisor, a distância que me separa do carro do vizinho que não conheço. Reparo que o lugar do lado está, ao contrário do que é costume, ocupado.
Sigo em frente. Espero, impaciente, que a porta pouco despachada se abra na totalidade. Depois dela, a chuva molha a estrada. Hoje, vou experimentar um percurso alternativo. Talvez mais interessante ou igualmente entediante. As notícias desprendem-se do rádio.
Crise. Cortes. Corrupção. Sinónimos de um país desgovernado, sem freio. Mudo de estação. Passa música clássica. Deixo ficar. Lembro-me de desejar uma atmosfera tranquila no regresso a casa, depois de 163 quilómetros de curvas e contra-curvas, de marcha reduzida por causa de motoristas monótonos, de paisagens que casam Homem e Natureza.
Os penedos que hoje observo vão manter-se por ali, inertes e silenciosos. São testemunhos pesados de outros tempos. Enfrentam, destemidos, os dias vindouros. Acautelam a robustez no cimo de um outeiro vestido de giestas rasteiras.
Como se de um segredo se tratasse, guardam os carros que passam desenfreados, os que seguem devagar, os que param para fotografar a paisagem e/ou os que trazem à boleia. Resistem com a mesma impassibilidade às estações do ano.
Penso, pois, na efemeridade da vida. Na nossa frágil condição que, sem nos darmos conta, é uma espécie de sentença de execução sem aviso prévio. Hoje, perante estes penedos, penso nos problemas que estupidamente ensombram o presente, nas aflições dramatizadas, nas alegrias resumidas, nas saudades enfaixadas.
Adiante, há toda uma montanha penteada de verde. Não sou boa a distinguir as árvores, mas vislumbro um ar puro, percursos pedestres tranquilos, os sons distintivos dos animais. Penso nos piqueniques em família, em passeios de Domingo, noutros tempos despreocupados e feitos de encontros.
Atravesso localidades. Reparo nos nomes inusitados. Bóbeda, que na minha terra significa abóbora, dá também nome a uma aldeia. E a gama é variada: Vilela da Cabugueira, Zimão, Telões, Gralheira, Benagouro, Escariz, etc.
Num pasto, duas dúzias de ovelhas passeiam-se sem pressa, longe do olhar zeloso do pastor. Dele, o único sinal (e dos tempos modernos também), só uma cadeira de plástico debaixo de um sobreiro.
A aproximação a um pequeno povoado traz uma nova imagem: um espigueiro datado de 1850. Recupero os penedos no cimo do outeiro. Continuarão, inexoravelmente, imponentes e sérios.
Saio da estrada sinuosa. Vislumbro a profusão de sinais e cores, prenúncios de trânsito, movimento, caos - o adeus adiantado à tranquilidade de uma viagem.
Se tudo está sujeito
à infalibilidade das leis da matemática, questiono-me se haverá, realmente, métrica
para a solidão das horas quietas.
Se tudo está subjugado
à passividade das leis que os doutos escrevem, pergunto-me se haverá permissão
para os imprevistos que se intrometem nas vidas.
Se tudo se presta a
regras e códigos (recriados, obrigatórios, auto-impostos), onde cabe a
imaginação para inverter o sentido, a ousadia para descobrir, o espírito
crítico para aperfeiçoar, a ambição de querer seguir pela sombra?
Nesse futuro que havemos de viver, teremos serenidade a perfumar os
dias desempoeirados.
Ficaremos enjoados de televisão, computador e telemóvel, da pressa, do
conflito, da competitividade que hoje nos impõem, dos lembretes e das anotações,
da lista de compras e da agenda sem espaços em branco.
Voltar-se-ão a ouvir os risos das crianças a brincar na rua, a correr
atrás da bola ou a jogar ao peão. Voltar-se-ão a ouvir as discussões à volta de
um jogo de cartas, no final da tarde, enquanto se aprovam os petiscos que
repousam sobre a mesa.
Haverá energia para acordar
bem-disposto, para explorar os recantos e os poemas, para encarar quem se cruza
connosco e dar os bons-dias, para fazer compras nas mercearias, para cuidar das
flores, para empurrar os nossos filhos no baloiço ou ajudá-los com os trabalhos
de casa.
Haverá tempo para deixar de desejar que o cheiro a bolo de laranja, ao
domingo à tarde, venha da porta ao lado. Seremos, pois, convidados bem-vindos, depois
de tocar à campainha.
Soltaremos
gargalhadas, respiraremos profundamente e abraçaremos esse pôr-do-sol por fim.
Refugiar-nos-emos para escrever, para apreciar a solidão sentida de
coração cheio.
Haverá tempo de acender a lareira, ficar junto de quem gostamos e ter
apetite de conversas longas.
Provaremos que o nosso lugar é neste tempo feito de alma, que hoje como
antigamente desejamos com a mesma intensidade.