Aritmética dos Afectos

03:54

Os seus fundos olhos mansos encaram-me, desconfiados. São desse castanho-escuro que veste estas cepas que tantas energias nos sugam. Lança-me um ar de enfado, mas compadece-se com as gotas de suor que me lavram a testa. Ele conhece o ângulo mais remoto do gesto que vou fazer. Eu finjo, descaradamente, que não vejo a fraqueza das suas pernas arqueadas, fruto do cansaço de anos.

Os dois calcorreamos, calejados, estes socalcos que fazem do Douro uma imensa escadaria, um belo jardim em cascata. Mal o sol se espreguiça, desço ao pátio e levanto o ferrolho. Jeremias aproxima-se, antes de ouvir a minha voz. Já lhe sei as manhas e ele, as minhas fragilidades. Os outros não percebem o quanto gosto deste burro.

Tenho 72 anos, um alforge carregado de nostalgia desse tempo em que os meus filhos não me chegavam à cintura. Todos reclamavam da sopa que a Julieta lhes colocava, a ferver, nas tigelas. Nenhum deles queria ser viticultor “quando fosse grande”. Isso entristecia-me, mas nunca lhes disse. Hoje, têm vidas arrumadas, empacotadas em betão, arredados de mim, em coordenadas distantes. Hoje, duvido que sejam tão felizes como quando saltitavam por entre as poças que a chuva deixava na vinha, jogavam às escondidas atrás das videiras carregadas ou se esgrimiam com os galhos que sobravam da poda.


O Jeremias volta à direita, um impulso que me chega à mão que prende a charrua. Sabe o caminho a tomar sem que tenha de lhe gritar, porém, no início, fazia de mim o seu escravo. A cada ordem, a execução contrária. Fui-lhe ganhando uma estima tal que nunca o cedi para qualquer empréstimo temporário, nem mesmo para serviços mínimos para os quais os meus irmãos o requisitavam.

Uma vez, passei junto de alguns catraios que riam alto. Segui caminho, sem lhes dirigir palavra. Foi então que os ouvi gritar: “lá vai o louco do velho e o seu fiel amigo”. Olhei para as orelhas espetadas do Jeremias e afaguei-lhe o lombo, sobrecarregado com molhos de couves para dar aos vizinhos.

Faltam mais três valados. O sol queima-me a nuca e as folhas das videiras, que nem com banhos de caulino se mantêm joviais. Penso na frescura da adega, onde repousa o vinho sagrado. O pêlo do animal denuncia a avidez pela sombra do palheiro.

Somos dois solitários, que aprenderam a viver com a quietude e o silêncio do pátio. Nos vasos, as plantas continuam secas e o lajado não se gastará com mais correrias. Poderei ser um velho com um burro, também ele velho, mas sei o quão valioso é ter companhia quando a casa ficou vazia.

Por hoje, a jorna está ganha. O Jeremias, contrafeito, zurra enquanto lhe puxo a corda para irmos noutra direcção. Abrando a marcha para atender a chamada do meu Gabriel. Ouço o choro da pequena Tatiana. Vou conhecê-la em Agosto. Sorrio, enquanto meto o telemóvel na algibeira.

Viro-me para partilhar a boa notícia com o Jeremias e, de repente, vejo-o caído no fundo da ladeira. O medo paralisa-me os joelhos. Fico onde estou. Os olhos fixos no seu focinho quieto à espera, sofregamente, de o ver mexer.

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