Agora, é morrer aqui...

14:55

As minhas mãos, magras e engelhadas, repousam separadas no meu regaço. Os meus olhos, claros e cansados, fitam, com desdém, o velho que não pára de sobrepor o seu lamento ao murmúrio da sala quase cheia. Os meus ouvidos captam, em esforço e sem controlo, esse gemido arrastado de um "aiiiii" cavernoso e completamente assíncrono de qualquer dor real.

Procuro manter a respiração calma e estimular a indiferença do meu sentido crítico. Apesar das forças serem cada vez mais diminutas, a vontade, essa, mantém-se férrea como no tempo em que tinha toda uma vida para construir. Apetece-me, contrariando a imagem da velhinha debilitada (que admito que é o que vejo no espelho e, por isso, é legítima a percepção de terceiros), levantar-me deste sofá desconfortável ao qual já me habituei e dirigir-me àquele homem que não se cala e exaspera os demais, mesmo que a grande maioria dormite ou já nem tenha grande consciência do mundo à sua volta ou até se fixe num ponto indefinido que passa a focar a sua atenção deficitária. Eu fico impaciente com aquele velho que, ora, sem mais nem menos, se ergue do sofá irmão do meu, três filas adiante da minha, para emitir aquele som monótono, arrastado e desesperante, ora se deixa estar sentado e balança o corpo para a frente e para trás ao ritmo do seu "aiiiii".


Ai que bom seria se estivesse em minha casa ou se a idade ainda me permitisse sair para dar um passeio. Que privilégio seria continuar deitada no meu sofá bege, com a manta sobre as pernas, a olhar as fotografias dos meus filhos com os seus filhos ao colo, sorrindo para mim, através da objectiva atrás da qual me escondia para congelar fragmentos de dias especiais. Que privilégio seria continuar a observar o crepitar da lareira e lembrar-me do ímpeto saudoso do meu pai a atiçar os paus. Que privilégio seria poder fingir que lia enquanto assistia às disputas dos meus netos pelo mesmo brinquedo. Que privilégio ter ainda a memória para continuar a sacralizar estes momentos que nos obrigam a lembrar que tivemos uma vida com dignidade e afectos, longe deste "aiiiii" ininterrupto.

A caminho da hora da refeição, escrutinei uma jovem que se fazia acompanhar por uma funcionária. Reparei na discrição com que se ambientou e notei-lhe o olhar de comiseração pelo velho que não se cala. Ainda aturdida por aquele eco lamuriento nos meus ouvidos, via aproximar-se e observei claramente os seus contornos: cabelo castanho, olhos a condizer, tez branca, voz jovial. Quis fazer conversa e, por educação, correspondi à sua atitude bem intencionada. Não se alongou o nosso diálogo, porque o velho que continua a levantar-se para pronunciar o seu bem audível queixume incomoda-me e tolda-me o raciocínio. A mulher, ainda tão jovem, quer continuar a saber da minha história como se a minha vida pudesse ser relatada em meia dúzia de minutos. O mesmo tempo que ela estará ali, num microcosmos que a arrepia no íntimo de si, que lhe devolve o seu próprio futuro de decrepitude e de dependência.

Olho-a, sem medo, e vejo-lhe essa sensação de desconforto, acentuada pela voz cavernosa do homem. Não desvia o olhar, enquanto vai conversando, se calhar com real interesse, com espontânea curiosidade, mas decido ditar o ponto final e atiro-lhe, em jeito de remate final da minha deixa: "Agora, é morrer aqui..." E não deixo de olhar para ela, talvez sendo interpretada como um desabafo desesperado. 

Então, entre nós acabam-se as palavras e nasce um silêncio redondo, enorme, pontuado excepcionalmente pelo eco do "aiiiii" que há-de servir de banda sonora do meu estertor. Ela assim o deve ter imaginado e, por isso, tocou no meu pulso magro, onde baila a pulseira que a minha neta me trouxe do Alentejo, deu-me um sorriso ténue e um olhar triste, despedindo-se rapidamente para conter a emoção de se imaginar também naquele desfecho. 

Vejo-a, ainda, do outro lado da vidraça, a caminhar insegura pelo passeio. Talvez lhe corra uma lágrima pelo rosto jovem e as minhas derradeiras palavras a torturem por uns dias... Depois, voltará (como deve ser!) à sua vida de todos os dias, com os problemas irresolúveis, os compromissos e o tempo que não chega para nada. Esquecer-se-á que (tal como eu o fiz) nunca saberemos como acabamos com tanto tempo e sem nada para fazer. 

Se as minhas palavras lhe perturbarem o sono nalguma noite de má consciência, ela saberá que agora, só me resta morrer aqui. Saberá que também ela poderá acabar assim: sozinha, bem consciente disso, num sítio homogeneizado, homologado para proporcionar qualidade no acto do envelhecer, como se isso se substituísse a toda uma vida da qual nos desprendemos. 

Por agora, só quero que o silêncio aconteça, nascido do cansaço do maldito do velho em repetir até à exaustão esta lamúria falsa a que ninguém acode, essa lamúria que não lhe devolverá o que foi, o que teve, o que sentiu, o que viveu. 

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