8.18.2007

Um pouco de piano para os pensamentos perdidos

A harmonia das notas tocadas, com mestria e sentimento, encontra pensamentos sem bússola. As notas graves fazem estremecer as fragilidades que um dia cheio deixa a descoberto. Observo os desconhecidos à minha volta e escuto o belo do som com que o piano me galanteia.

Vamos preenchendo os vazios que subsistem em lugares obscuros de nós com muitos nadas, cheios de coisa nenhuma, que agarramos dos dias desprendidos. Fazemos corte ao repúdio pela regularidade das tarefas, mas, na verdade, idolatramo-la com bem menos autenticidade na representação. Qualquer improviso gera tempestades, pois não sabemos lidar com o que escapa ao previamente delineado. Eu não quero agir assim! Dá-me prazer reagir a algo ou a alguém que me surpreende de uma forma espontânea, não formatado pelo pensamento antecipado.

Do rol dos viciados em planeamentos pormenorizados, dos que não admitem o mínimo de espaço para uma qualquer eventualidade não prevista, dos que abominam surpresas pelo medo de não lhes saber resistir, soube perceber o que não queria para mim.

Conheci almas feitas de gelo. Outras que congelaram os sentimentos no contexto em que nasceram. As evoluções que sofreram não constam do diagnóstico, foram simplesmente ignoradas como se não fizesse a menor diferença. Conheci rostos enrugados que eram expressivos por si, dispensavam palavras descritivas das vivências que acumularam. Conheci mãos que sabiam soprar ajuda com um bafo de ternura. Conheci também quem fosse capaz de recusá-la, por capricho e até por orgulho. Conheci olhos humildes e nobres que me ensinaram muito.

Os tons agudos do piano retiram-me da dispersão destes pensamentos avulsos. A iluminação artificial faz-me desejar um corte de electricidade só para assistir à balbúrdia dos olhos que não sabem ver na escuridão inesperada, dos rostos aflitos por causa da anormalidade da situação, das mãos trôpegas em busca de objectos reconhecidos, dos ouvidos surdos à música do piano que me enche a alma.

1 comentário:

  1. “A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta por intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora.
    A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distracções e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.
    Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstracta para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental.
    A nossa inteligência abstracta não serve senão para fazer sistemas, ou ideias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos a olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.”

    Fernando Pessoa

    [mike]

    ResponderEliminar