6.11.2012

703: o autocarro dos sonhos

A primeira vez que o vi passar, quase não acreditei. Creio que até me ri. Distraidamente, o insólito pareceu-me tão surreal, tão irrisório, tão longínquo. 

Devo ter voltado a cabeça, colocado o cabelo atrás da orelha direita e caminhado na direcção oposta, com passo seguro. 

Já vi muitos crepúsculos. Já experimentei bastantes coordenadas. Já estudei vários mapas. Já fiz tantos quilómetros. Já perdi de vista o 703 que (não sei com que frequência) passava quase debaixo da minha varanda. 

Tenho tantos sonhos… Simples, egoístas, exigentes, legítimos. Cuido deles com desvelo, mas não deixo que os conheçam. São meus, inexpugnavelmente meus. São o território protegido por arame farpado. São o meu passaporte secreto. 

Trago-os no peito, sempre. Às vezes, elevam-me, outras, curvam-me o ânimo. Tenho tantos sonhos inconfessáveis e nunca entrei nesse autocarro. 

Já apanhei chuva, vento e sol, debaixo dessa paragem. Já partilhei o banco, a manhã, o tédio com os estranhos que esperavam como eu. Já aturei gente desinteressante, dramática, bem-parecida, tagarelas no fundo. 

Já senti os ombros cansados, as costas, os pulsos, os pés doridos. Já passei noites em sobressalto, com medo de não conseguir acordar a horas de chegar a tempo. Já saí de casa sem tomar o pequeno-almoço para não me atrasar. 

Já deixei bilhetes de despedida, de agradecimento ou com promessas de voltar. Já carreguei malas pesadas, subindo e descendo ruas e vielas. Já falei dessas viagens, dedilhando ilusões e esperanças.  

Já corri para chegar à paragem, mas nunca cheguei a apanhar esse andarilho que me levaria até sonhos, como promete a todos os que vêem o painel.

   

Esse autocarro circula por aí, cruzando as ruas indiferente às multidões. Esse autocarro talvez tenha o destino certo, a rota sem falhas, o caminho sem desvios, enganos ou proibições. 

Nunca ousei entrar... Escolhi sempre outros autocarros ou o metro ou, mais tarde, o carro. E até agora nenhum me ajudou a chegar a essa terra utópica. 

Se um dia descer desse autocarro, com nervosismo e ansiedade ou tão-somente aliviada, talvez encontre novos rostos, a possibilidade de escrever mais histórias, a adrenalina de viver, outras certezas.

2 comentários:

  1. Filipe Pinto8:57 da manhã

    Não apanhes o autocarro que te leva pelas avenidas mais largas. Desfruta as veredas, mesmo que magoes os pés na viagem. Vai doer, e pode demorar - mas um dia darás com os Sonhos ao virar da esquina ;)

    ResponderEliminar
  2. Penso que a felicidade não estará certamente num qualquer autocarro em particular...mas sim dentro de nós!
    Assim, acredito que nos cabe perseguir os nossos sonhos através de todos os meios ao nosso alcance sejam eles o metro, autocarro, carro, quiça barco ou até avião e, se todos eles estiverem lotados ou nos parecerem inacessíveis, porquê não inventar o nosso próprio meio de transporte?
    Urge é viver!!!

    ResponderEliminar