Alvorada no Douro
16:03
Desvio a cortina porque esta maldita insónia
regressou. A escuridão começa a ser expulsa… A princípio, empurrada por uma
neblina cor-de-rosa. Depois, sacrificada nesse duelo de espadas luminosas.
E o rio que se espreguiça, no fundo do vale, é indiferente
ao cheiro a rosmaninho que me chega ao parapeito. É como se ao correr
lentamente, acariciasse as margens e o soltasse. Ao longe, o grito estridente
do melro estilhaça este silêncio virginal.
O nascer do dia tem, num primeiro instante, esse
sabor estranhamente familiar, como se experimentássemos pêssegos maduros de
olhos vendados.
E, de súbito, junta-se ao protesto do melro os
impropérios do tio Joaquim. Aquele homem, que carrega já 88 outonos, tem uma
fibra incomum e um feitio que roça mesmo o impossível. Talvez seja isso que o
conserva tão genuinamente irreverente.
O relógio marca 6h15 e já ele grita, na ombreira do
curral, aos cães adormecidos para que lhe virem o gado. Sem problemas em despertar
os miúdos dos vizinhos, não se cansa de dar ordens e ir subindo de tom. «Oh
Alzira, sua ovelha rabugenta, anda lá. Mexe-te», atira para o ovino que o
ignora. De vara de amieiro em punho, bate com estrondo na porta metálica.
Alzira e as companheiras atropelam-se para se libertar daquele pastor doido.
Pouco depois, a minha avó vem à varanda. Exige a
tio Joaquim algum respeito pelo descanso dos outros, acusando-o de tudo e mais
alguma coisa, numa fúria descontrolada de quem já se calou muitas vezes.
Ouço e decido pegar na minha máquina fotográfica,
apostado em dirimir o conflito. Para espanto da minha avó, desvio as fitas que
barram a entrada às moscas e dou-lhe um beijo de bom-dia, enquanto lhe peço que
se acalme e que desculpe o tio Joaquim. Pouco convencida, asseguro-lhe que
tinha combinado na véspera, na tasca do tio Júlio, que o acompanharia pelos
montes fora. De repente, só lhe interessa saber se levo farnel. Despeço-me e
desço apressado.
Já apanhei o rebanho no fundo da rua. Aproveitei e
tirei a objectiva de longo alcance da mochila. Fiz umas imagens, focando o
velho e solitário pastor, de costas voltadas para aquelas que continuavam a dar
entusiasmo e sentido aos seus derradeiros dias. Sofria de bronquite crónica.
Durante um quarto de hora, seguimos pelo mesmo
carreiro, mas afastados, propositadamente. Queria deixá-lo acalmar os nervos.
Fui acelerando o passo e aproximei-me, informando,
em jeito de pedido de autorização, que gostaria de acompanhá-lo. Ele, que já me
tinha topado a fotografar e fazendo-se de difícil, exigiu que o deixasse em
paz. Contrapus que aquele caminho e todos os outros eram públicos, pelo que
continuaria...
Não é que o homem volta à sua esquerda, abre uma cancela e faz entrar
as ovelhas aos pares? Eu lá ia fotografando, entusiasmado, os chocalhos, as lãs
encaracoladas. Por detrás da objectiva, perseguia os cães que entraram em último
lugar e eis que o tio Joaquim, sem mais nem menos, puxou a cancela e interditou
a minha passagem.
A mochila foi para o chão e vi, então, o raio do
velho cuspir-lhe em cima. “Fora daqui você e as suas fotografias”, ordenou,
indignado.
Sacudi a poeira das calças e limpei o suor da
testa. Olhei-o com pena. Não passava de um homem só e amargurado, mal
compreendido e pouco tolerável. Mas aquela atitude ultrapassou todos os limites…
Nem lhe dirigi palavra. Debrucei-me para apanhar a mochila.
Ele estava vergado sobre a cancela e tossia
ininterruptamente. Viu-me voltar-lhe as costas e afastar-me. Ao fundo, as
ovelhas pastavam serenas. Caminhei devagar e estanquei quando ouvi o som seco
de um corpo a cair por terra.
Corri ao encontro do tio Joaquim. Pulei a cerca. Vi
que continuava a tossir, enrolado sobre si mesmo. “O que tem tio Joaquim? Quer
água?”, disse-lhe. E ele, a espaços, responde-me: “Não. Quero é mais tempo”.
Percebi, então, que era verdade o rumor que abalava a aldeia: aquele homem
estava a morrer… Quase nos meus braços.
3 apontamentos