Caminho por entre estas paredes que cheiram a sofrimento desinfectado. Cada
passo acentua o medo, exalta a dúvida do que vou encontrar. Viro à direita,
vejo o 24 na porta entreaberta e a cortina corrida, lá ao fundo. Um vulto
debruçado sobre a cama onde o meu avô permanece quieto e vacilante.
Aproximo-me, sempre na esperança de o ver com aquele sorriso matreiro.
- Bom dia! Então, avô, pronto para irmos beber uma limonada?
Ele ri-se, a custo. Queixa-se das dores que lhe trucidam os rins.
- Não tarda nada o senhor Manuel está a saltar desta cama para provar um bom cozido à portuguesa -, diz uma voz suave que não estranho.
Levanto os olhos para, entre a surpresa e o pânico, confirmar o nariz adunco, num rosto oval sobre o qual recaem cabelos negros. Conheço-lhes a rebeldia. Sei de cor os contornos piscianos tatuados no seu ombro esquerdo. A Rita, dez anos depois, no leito de morte do meu avô.
- Rui, ao tempo… Não fosse esse olho azul e o outro verde e já quase não te reconhecia – observa, numa aparente serenidade.
Sim, de facto, estou gordo, cortei o cabelo, tenho algumas brancas, e trago no coração uma outra mulher. Esforço-me por esconder os nervos e devolvo ironicamente:
- Caramba. Quanto vale os meus olhos serem diferentes... Se me cruzasse contigo na rua só eu te identificaria.
- Sim, talvez…
O meu avô pergunta-me se já conhecia a voluntária e percebo-lhe a curiosidade de saber de onde e desde quando. Atropelo-lhe a intenção de tirar mais nabos da púcara, enquanto encaixo a nova informação. A Rita é voluntária? Ela que era a pessoa mais egocêntrica e egoísta da minha turma, filha única e mimada, sedenta de todas as luzes para não se rever na sua sombra.
- Fazes voluntariado aqui?
- Comecei no Verão passado, mas será para continuar. Tem sido uma experiência tão gratificante… Poder ajudar os outros fez-me descobrir tanto em mim.
- Confesso que não te imaginava nesse papel.
O meu avô interrompe-me para lhe lançar um galanteio:
- Ora, Rui! Qualquer um ressuscitaria ao ver este olhar tão dócil e belo debruçado sobre si. Se eu fosse mais novo, garanto-lhe que mudava essas ideias de ir para as Carmelitas.
Novo soco no estômago. Engulo em seco. Ela esquadrinha-me pelo canto do olho, tal como fazia quando me queria seduzir. Disfarço o choque, a estupefacção, a incredulidade, estendendo o invólucro para o meu avô.
- Sabores adocicados, em tons de branco. Não sei de quem herdaste tão bom gosto – atira-me o meu avô, com um olhar cúmplice.
Longas tardes a jogar à caça do chocolate branco. Escondia-me os bombons nos sítios mais inusitados, em igual número daqueles que ele, refastelado no sofá, ia degustando. Dava-me pistas, espaçadamente. Irritava-me tanto quanto me aguçava o apetite. Nascia, assim, um vício para toda a vida.
Vejo-a segurar na caixa dos chocolates, enquanto o meu avô se delicia com o terceiro bombom.
Na primeira vez que a convidei para sair, arrisquei e levei-a a uma chocolataria. Deveria ter percebido logo que quando manifestou a preferência por chocolate preto, nunca seríamos felizes para sempre. Ela levava um vestido que lhe deixava as costas à mostra e exibia um sorriso tão largo… Contava as anedotas que o pai lhe tinha ensinado e ria sem se importar com a vida. Era impulsiva como a liberdade que, um dia, se refreou.
O monitor de sinais vitais esguicha. O som em contínuo, linear, surreal. Ela do outro lado da cama, com os olhos pregados nas minhas lágrimas.
São pessoas, por vezes!... Outras, talvez sejam os velhos caminhos perdidos por entre as memórias. Por entre a saudade.
ResponderEliminarA saudade...! Não sei se é ela o hífen do reencontro entre a Rita e o Rui, mas é visível uma espécie de encantamento contido que transporta este último a um lugar que, afinal, nunca foi esquecido.
Ela, por sua vez, com os olhos pregados nas lágrimas dele, talvez já não se envolva em jogos de sedução. O egocentrismo é bem capaz de se ter transformado em solidão!...