Para lá da porta, havia uma cortina cerrada de chuva. Na porta, recortava-se
a silhueta sombria da pessoa que, após uma série de perguntas, percebeu quem eu
procurava e que, por fim, me disse que tu já não vivias. E o tom foi de uma
constatação tão banal como se comentasse que lá fora chovia impiedosamente.
Gregory Thielker
Bastou uma manhã para conhecer o essencial do teu percurso biográfico e
para que se instalasse uma empatia muda com esse ar franzino num corpo
envelhecido, a lembrar a menina de olhos vivos de outros tempos. Bastou,
também, este instante numa manhã chuvosa para que uma tristeza quieta se instalasse
no meu peito.
Nascida em 1918, ano de tréguas no primeiro conflito mundial, ela cresceu
depressa, como se exigia naqueles tempos aos membros de famílias numerosas.
Ganhar para o sustento era uma missão à qual ninguém se furtava, independentemente
das vontades e/ou capacidades. Toda a vida revolveu a terra, semeando e
colhendo para criar uma prole de oito filhos. Já com o cabelo cor de neve,
haveria de dar colo a vários netos e conhecer o rosto de outros tantos bisnetos.
Quando a conheci, ela entretinha o tempo a tricotar, ora cachecóis para
se agasalhar nos dias invernosos, ora rendilhava para afastar o tédio dos dias
nascidos para serem indiferenciados. Gostava de desafios pela força que lhe
geravam no espírito e no corpo. Por isso, destinava algumas manhãs a fazer
ginástica. Com uma destreza admirável, segurava a bola e cumpria as ordens do
monitor, erguendo os braços, lançando o esférico, flectindo as pernas enfraquecidas
pelos 93 anos.
Levava tudo isso muito a sério, porque nos seus dias, tudo era feito à
medida da sua energia e não havia espaços em branco. Ela tinha de estar ocupada
para que as memórias e os sonhos nunca lhe falhassem.
Quando perguntei por ti, não me ocorreu que os meus 365 dias eram muito
diferentes dos teus. Imaginava-te ainda cheia de genica, a servir de exemplo
aos teus contemporâneos quase centenários. Por isso, pensei, apenas, que iria
ouvir o “continua uma menina de cabelos brancos”. Mas não.
Despedi-me com cordialidade e empurrei a porta para enfrentar a chuva.
Pelo caminho, o pensamento entrelaçado com essa manhã de sol em que te conheci.
Já em casa e sem ninguém perceber, quis voltar a ler o que escrevi sobre ti.
Quis que aquele encontro nunca conhecesse uma despedida que não fosse feita
assim: por dentro e num profundo silêncio de respeito pela tua partida.
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