04:14

À volta da lareira, já não há o velho escano de ripas largas de madeira ou os pequenos bancos individuais. Da manta de retalhos, onde se amontoavam os brinquedos e onde se depositavam os desvelos, nem memórias definidas. Não há o frio que se espevitava do postigo a percorrer a espinha dorsal.

As vozes calaram-se. Repentinamente as paredes amarelecidas ficaram desorientadas. Sentiram-se gigantes num espaço exíguo.

O coração vive sem lembrar esses vazios, mas em noites taciturnas eles emergem urgentes. Tenho saudades desses desafios de cartas, dessas tramóias de boa fé. A percepção de um pau a fazer riscos na fina camada de cinza ressalta e havia ainda o milho. Soltado de uma mão enrugada, com unhas grandes, acabava por se desfazer em pipocas sujas, quase intragáveis (à excepção das mergulhadas em muito açúcar da lata). Em ecos diluídos chega-me agora uma espécie de lengalengas que eram proferidas a propósito.

O fogo consumia a lenha e o serão tinha a duração da sua combustão. O tempo não tinha pressa. O dia a seguir seria apenas mais um dia com vagar. As horas eram partilhadas e esquecia-se a cacofonia da televisão, coberta por um pano azul desbotado.

Hoje faz um frio diferente e não há esse lume. Amanhã, quero lembrar-me dessas noites idas e, nos confins das memórias desmanteladas, reconstituir as recordações duras.


Salvador Dali

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