Vou fugir para alguns recantos,
em busca de serenidade.
Preciso de uns dias vagarosos e completos.
Vou fugir das sombras para o contágio das luzes.
Preciso de recuperar a inspiração e intuição
Vou fugir para voltar com energias retemperadas.
Já não há garagens com portas abertas ao final da tarde,
Já não crianças a brincar, a correr, a pedalar, a cair,
Já não há risadas sonoras, zangas intempestivas ou choros repentinos,
Já não há reformados nas janelas, a apreciar a miudagem,
Já não há vestígios de bolas nas paredes claras,
Já não há cinzas quentes nos fogareiros.
Já não há entusiasmo a resvalar pelas escadas, em direcção à garagem,
Já não há correrias para despachar os tpc’s e ir brincar para a rua,
Já não há pessoas para contornar nos passeios, ao volante da bicicleta,
Já não há jogos de futebol, elásticos para saltar ou brincadeiras inventadas,
Já não há mães a chamar para ir comer, nem súplicas para ficar mais um pouco.
Já não há cuidados para arrumar a bicicleta colorida sem riscar o carro.
Já não há pessoas a estender roupa nas cordas e a espreitar a alegria dos catraios. Já não há dois dedos de conversa com o vizinho do apartamento do lado. Já não há esquemas para convencer as mães a ficar apenas mais 5 minutos. Já não há peitos sem fôlego, nem sapatilhas sujas a deixar marcas nas escadas do prédio. Já não há fugas para não assumir a bola mal apontada que bateu no carro acabado de lavar. Já não há o saudável convívio que enriquece o crescimento, mas uma quietude silenciosa.
Hoje é bem diferente... O cenário é, para mim, difícil de imaginar e escapa completamente à minha compreensão. As crianças estão acomodadas no sofá a jogar playstation, sozinhas, com pacotes de bolachas ao lado, porque levantar o rabo para ir à cozinha é já um grande esforço físico. Já não convivem na rua do bairro. Fecham-se no quarto e abrem-se aos chat’s. Se calhar até conversam com o vizinho do prédio em frente, mas não o conhecem. Jogam ao esconde-esconde numa versão actualizada, adaptada ao mundo virtual. As pessoas reformadas espreitam o mundo pela janela da televisão. Os vizinhos já não trocam cumprimentos quando se cruzam no prédio. As roupas já não secam no fio, agora há máquinas de secar roupa bem mais cómodas. E nos fogareiros enferrujados, há apenas brasas apagadas.
Blog: Atrás de uma porta fechada
Os assuntos que abordamos são sempre preenchidos por pessoas que o outro nunca ouviu falar e cuja existência não é assim tão significativa quanto tentamos fazer parecer. A nossa interacção quando estamos em eventos sociais roça quase a comicidade pelas invenções que arranjamos para simular desencontros.
Evitámos tropeçar em encontros indesejados, mas eles acontecem. Há sempre algo ou alguém que exigem uma comparência simultânea e, claro, para não dar nas vistas, acedemos e reagimos como antes. A alma é que se ressente num desconforto que nunca julgámos ser possível sentir. É esse toque ligeiro de ombros para a fotografia que ficará esquecida num qualquer álbum, indiferente à má publicidade que foi feita. Depois de vendermos o produto, dedicamos as nossas atenções a segmentos de público distintos.
Acabadas as marchas sociais, arrumamos o guarda-roupa de emergência até à próxima. Vestimos a pele de todos os dias e não a tiramos. Nem mesmo quando voltamos a estar juntos, a sós, permitimos que as emoções dispam essa pele, apenas chegam a ser uma camuflagem.
Hoje, as portas do cemitério estão escancaradas. Amanhã, já o seu peso é demasiado para as empurrar e entrar. No dia de hoje, os cemitérios ocupam uma nota na agenda das pessoas. Afluem tantos, ao mesmo sítio, que descaracterizam o sentido da visita. Em passos curtos e apressados, movem-se entre este e aquele repouso eterno dos entes queridos para colocar arranjos de flores. Muitas flores, coloridas e frescas. Ainda que a beleza das mesmas já não possa ser apreciada pelas pessoas a quem as oferecem.
Poucos conseguem olhar por muito tempo para os nomes inscritos na pedra fria sem que um arrepio lhes percorra o coração. Ali é, efectivamente, a última morada física de um ser humano. Ali, terminaremos todos. Ali, está o protagonista de uma existência, sobre a qual já caiu o pano. Acabou-se o espectáculo porque se consumiram os dias, porque findaram as emoções, as ilusões, as pulsações. Não se ouviram aplausos da plateia, pois ninguém bate palmas à tristeza da perda. Com lágrimas vertidas para dentro, discretamente no meio do alarido dos romeiros, recuperam-se fragmentos da memória que tragam momentos partilhados.
Mas os romeiros não se calam. Estão impacientes. São cansativos e perturbadores da paz tranquila que afaga estes sepulcros vazios. Vazios, sim! Pois, a par do vazio da falta que sentimos, levamos connosco a essência de quem ali está.