Em cada afastamento sobra um vazio que fica desclassificado. As memórias confundem-se, apertam-se e essa fusão acaba por ser diluída com o tempo. Os abraços que se encolheram nas ocasiões favoráveis deixaram uma vontade inadiável de os recompensar nesta distância salutar. Aparece um e outro que vem tão depressa como desaparece. Por detrás das brumas onde se escondem, há lágrimas encostadas às pálpebras dos olhos bem abertos, em esforço desmesurado para não tombar.
Vêm esbaforidas, depois de calcorrear pelo tempo em passo acelerado para chegar ao poiso volátil. Parecem desorientadas mas com o destino definido. Transferem-se sem limite de carga. Permanecem sem pagar renda.
Tento esconder-me debaixo do mapa para que não me encontrem. Quero-as longe da ombreira da minha porta, porque prefiro não sentir nada a ter o peito em respirações em desalinho.
Quero que elas me deixem aqui, sozinho e pensativo, em raciocínios sem aplicabilidade e alguns até sem nexo. Gostava tanto de sentir como os outros, como aqueles que vivem à superfície.
Eu afogo-me nas coisas, perco rapidamente o distanciamento. A mim tudo me incomoda e me desassossega. Então acabo por me agarrar às saudosas bóias de outras paragens.
Tu começas aqui, eu termino ali. Como podes atirar-me já com “não consigo” se ainda nem sequer descruzaste os braços? O teu problema não é lançar mãos à obra e vencer essa insegurança inicial. Tu só não sabes se queres terminar. Portanto, somos como o sol e a lua, porque eu sei que vou conseguir e acredito nisso contra todas as evidências oponentes.
Se, às vezes, me falha a vontade, olho de frente as certezas que se perfilam cá dentro para as fazer desfilar aos olhos dos outros. Contudo, também já me faltou o empenho, a garra, a capacidade de concretizar a intenção de buscar alternativas para escalar o poço.
Um dia, faltaram-me as redes, os coletes salva-vidas, os cintos de segurança e demais mecanismos de retenção e protecção em caso de acidentes. Não que os tenha dispensado. Eles é que não se ajustavam à velocidade das minhas acções.
Por isso, é que já cai, fui atropelada, sofri fortes embates, fiquei em coma e tive demoradas convalescenças. Em todos os percalços, a memória foi a única coisa que nunca ficou afectada. Ela continua intacta e eficaz desde o primeiro dia em que a luz impressionou os meus olhos.
Tu esqueceste-te do que foste e recusaste a assumir como estás. Há em ti uma aparência que engana os demais e um desconhecimento sobranceiro do que significa trabalhar em conjunto. Isso exige competência aliada a compatibilidade de atitudes perante a vida.
Podemos até continuar a esforçar-nos, mas não vamos mais longe do que isto. Não consigo tolerar estar no mesmo barco, remando para alto mar, enquanto tu, do outro lado da proa, tentas lançar a corda para o cais. Não pode ser!
Eu gosto de desafios que testem os meus limites, que mexam com as minhas emoções, porque só assim aprendi a conquistar, a pulso, tudo aquilo que tenho. Depois, eu não gosto de dias retalhados, mas de uma existência com travessias turbulentas.
Sim, claro, também me sinto cansada, desmotivada e desnorteada. Nessas alturas, preciso de uma boa noite de repouso, em que a minha mente se permita abandonar o corpo. Nesses momentos de tréguas prefiro lembrar a tua outra imagem, cujos contornos diferem daqueles com que me debato no barco. Ali, ainda eras destemido e aguerrido. Por isso, me enerva tanto que deixes os medos e as falsas acalmias levarem a melhor sobre as tuas capacidades, sobre o teu talento e, sobretudo, sobre o teu instinto.
Os dias passam sem lhes conhecer o sabor,
Sem lhes sentir as arestas da dor.
Subsisto encostada a uma inércia que embrutece.
Não há emoções em correria nem sensações em corrupio.
Só uma alma atordoada numa embriaguez vazia.
(imagem retirada da Internet)
Caminhamos pela rua, distraídos e bem-dispostos. A conversa animada, os planos imediatos de conseguir uma esplanada para tomar café. De repente, reparo nos meus pés nas sandálias e ouço, do outro lado da estrada, os sinais da urgência, das pessoas que neste preciso instante precisam de assistência, os gemidos das aflições, o desespero presenciado pelas batas brancas. A noite está quente e eu assaltada por tudo isto que não consigo controlar.
Rimos não sei porque motivo, mas sei porque o deixei morrer. A uns três metros de distância, lá estava aquele corpo estendido, com um grosso cobertor por cima, mesmo por baixo de umas luzes coloridas. Tentei passar indiferente ou talvez me tenha convencido de ter conseguido avançar com essa intenção.
Já mais próxima, vi-lhe os olhos claros. Estavam voltados para o outro lado da estrada, onde se agiganta um edifício acolhedor de todos os males, dores e sentenças eternas. Ajeita o corpo enquanto nós passamos. Semi-cerrei os olhos e suspirei, logo imediatamente disfarcei.
Seguimos a nossa trajectória. Não olhei para trás. Nada podia fazer e preferia não ficar tão perturbada, quase como se fosse aquela outra noite. Fiquei a pensar naquele rosto, nas razões de ter chegado ali, nas conquistas que terá abdicado, naquela estranha liberdade que eles apreciam, naquela incompreensível vontade de viver debaixo das estrelas. Talvez essa seja uma forma, a única, que lhes é permitida de contemplar um espectáculo ao alcance de todos, independentemente das geografias, dos estatutos, dos feitios, das bolsas.
Acabei por dormir sossegada, sem sentir aquele mal-estar do colchão como há uns anos atrás, quando as luzes intermitentes do semáforo me fizeram perceber que nos beirais onde pousam os pássaros, também se acolhem sonhos e esperanças de quem se abriga por baixo sempre que a chuva ameaça cair impiedosa.
Observo-a naquela serenidade intangível e ficamos neste silêncio meigo. Os gestos são simples, de uma genuinidade brutal. O olhar, irrequieto, debruça-se sobre o alcance dos pensamentos. E a liberdade nasce assim: terna, sedutora e independente de tudo. Nela habita uma poesia em delírio e um insondável desejo de partilhas ao serão.
Chegas até mim. Por telemóvel. E cada vez mais longínquo. São duas da manhã. Há quilómetros e quilómetros a separar-nos. Há as distâncias que deixámos crescer. A cada minuto, afirmam-se inquantificáveis e até mesmo injustificáveis.
O estado de espírito balança entre as promessas feitas e o consentimento do seu quase improvável cumprimento. Sei que não falharemos no essencial, mas no mais simples estamos a fazer como todos os outros.
Na verdade, fomos saindo da vida um do outro em pantufas e evitando fazer barulho. É que eu preferia mesmo ter ouvido a tua gargalhada antes de atravessares a porta. Isso obrigar-me-ia a puxar o eco dessa gargalhada para dentro.
Só que não fizemos barulho e, assim, terminaram as partilhas, os medos, as vontades, os desejos, as loucuras. Gostava que voltasses como foste um dia. Faz-me falta essa jovialidade, essa alegria descomprometida, esse ombro amigo de disponibilidade ilimitada.
Preciso de ti, mas não o assumo e tu sempre soubeste que remeto as minhas emoções para o mais violento dos silêncios. Enquanto as lágrimas não se soltam do coração vestido com armaduras de ferro, sei que não te vou deixar levar pelas vagas da vida.
Percorro a cidade. Sigo sem destino e sem pressa. O compromisso chega de forma inesperada, quase da mesma forma como nos conhecemos. Aquela troca de palavras, que não se chegaram a registar na memória, deixou um rasto no mais fundo de nós. Essa sensação de empatia imediata, de uma promessa de cumplicidade, de um afecto duradoiro.
Há pessoas nas ruas e crianças a fugir na direcção do sol. Está sol neste sábado invulgar. Vejo os bancos do largo. Uns vazios, outros com solidões abancadas. E na sombra dos passos, não posso deixar de reparar nas lojas fechadas no centro da cidade. Deixam-me incomodada esses pontos sem vida.
Consulto o relógio. Hoje não estou atrasada. Refugio-me, por fim, neste recanto do museu, onde as pessoas lêem e fico contente. Às vezes, pergunto-me se não será um absurdo permitir que atmosferas, desconhecidos e acasos tenham tamanho poder de contaminação no meu estado de espírito. Afinal, não me interessa ir ao fundo da questão. Da mesma forma que não procuro justificar o porquê de gostar de estar contigo.
Há silêncio aqui e é bom! Ultimamente encontrar um lugar que se desmarque da presença de música é missão arriscada. O empregado é solícito sem ser presunçoso. Gosto do atendimento discreto e simpático. Espero pelo meu interlocutor numa calma que não se abrigava debaixo do meu peito há algum tempo…
Será da luz do espaço ou da quietude do senhor que se sentou na mesa do canto? Tenho o caderno à mercê dos meus disparates racionais, enquanto ele lê o jornal. Partilhamos a exclusividade de estar aqui, longe do ruído da praça ali fora.
Ambos abafámos as palavras que não saberíamos encadear. O diálogo espontâneo, sentido e indispensável ficará para mais daqui a pouco, quando chegares. Olho o pátio, a relva e a porta de vidro. E penso que é confortável esperar…
Estava cabisbaixo, braços recostados sobre o tampo da mesa, mãos a embalar a caneta. Aproximei-me, sem que notasse a minha presença. Percebi o exílio do presente, dessa angústia latente a cada perda.
Fiquei a vigiá-lo, embrulhada na penumbra da sala. Noite fora, ele e o papel, num cúmplice diálogo de surdos. Extenuado pelas lágrimas incontroláveis, acabou por adormecer, ali mesmo.
As minhas pernas dormentes caminharam na sua direcção. Os meus olhos ousaram espreitar e pude ler-lhe o quão visceral era, afinal, aquela estranha relação:
«Se nunca me tivesse cruzado contigo, talvez hoje não sentisse esta paz absurda que chega a incomodar-me. Era reconfortante saber que estavas lá, mas nunca quis habituar-me a isso como uma certeza incontrolável. Agora, abrigo-me debaixo dos beirais dos telhados alheios na esperança de que a chuva que provocaste não me encharque as pontas dos dedos dos pés. Quero-os secos para quando chegar à tua beira.
E se nunca tiver tempo ou coragem ou oportunidade para confessar a falta que a tua distância me faz? Terei palavras para te desenhar o mundo imperfeito, braços para te carregar as incertezas a que te amarras, coração para te agasalhar nas horas frias do Verão.
Se nunca mais voltares, assusta-me a hipótese de saber que perdi para sempre o teu abraço apertado, o teu olhar desafiador, a alvura do teu sorriso e que estou irremediavelmente sozinho.»