Migrações

02:45

O silêncio arrefecia a tarde desse Outono nostálgico. Por toda a parte, esse chilrear contínuo e acutilante. No despique incessante dos pássaros, ouço a harmonia dos sons que nascem em sintonia com a Natureza repousada.

Aqui, a pressa afaga o tempo. O sossego da íngreme estrada com asfalto gasto é perturbado de quando em quando, se acaso algum carro passeia calmamente. A terra estica-se e faz uma sesta.

É bom estar aqui, onde a serenidade do meio contagia irreversivelmente o estado de espírito. Acalmam-se os pensamentos turbulentos. Refreiam-se os desejos de agitação e movimento.

Nas redondezas não há pobreza, degradação, trânsito, barulho, delinquência ou tudo aquilo que se pode contar numa cidade. Só os voos dos pássaros são repentinos, rápidos e plenos. Aqui, pelo menos, as pessoas não tentam imitá-los!

Aprende-se que os voos repentinos não estão ao nosso alcance e nunca poderiam ser plenos, porque raramente ficamos agradados com os céus que conhecemos. Ali, na lonjura de um olhar ligeiramente desviado para a esquerda, o pombal ameaça sofrer o desgaste das invernias, dos calores de Agosto, do tráfego e das greves dos pássaros.

Eles voltam sempre… Correm os céus daqui, da cidade grande, da vila modesta ou do velho casario isolado no meio da montanha. Cruzam-se com outros pares, que levam rumos diferentes, e voltam a reencontrar-se ali, no pombal caiado de telhado destapado.

Pulam de árvore em árvore, agitando os braços do pomar. Nos voos que ainda falta começar, aplaina-se a certeza de voltar ao poiso habitual de convívio fraterno. As picardias e atropelos para obter o melhor lugar perdem o sentido. Vão saltitando sempre, de poiso em poiso, sem convicções nem ambições.

Nós, humanos, habituados a voos rasantes, queremos voar mais alto, ainda que sintamos o pânico da queda ser proporcional. Cruzamos com outros, que vão em sentido oposto ou na direcção que gostaríamos de ter tomado. Poucos são aqueles que gostam de voltar ao poiso habitual. Desses, menos ainda são aqueles que sentem verdadeira satisfação por, pelo menos ali, serem poupados às lutas por um lugar melhor. Aquele, bom ou mau, é o seu lugar, o que lhe pertence e pertencerá. Ainda há, embora pouco e às vezes simulado, convívio fraterno entre aqueles cuja inveja não lhes coordena as acções, entre aqueles que sabem lidar com a presença luminosa do outro.

Se calhar, precisamos de pombais caiados, onde faltem uma ou outra telha para que possamos cantar também, livremente como os pássaros.

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