Do meu prédio (ou de qualquer outro)

09:30

Alinhados, respeitando o espaço do outro, os carros conversam entre si na rua adormecida. O silêncio dos motores é perscrutado pelo cão vadio que fareja ao redor de um dos postes de iluminação.

Há uma ou outra luz acesa, talvez de almas irrequietas para quem o sono chega mais tarde. Os chinelos emparelhados guardam a cadeira desconfortável onde me sento para acomodar o pensamento.

Na maioria das vezes, um chá ajuda à fluidez das ideias desirmanadas. Na sala escura, sempre o ruído incómodo da televisão. À minha volta, indícios do mundo. Há barulho no prédio. Rituais académicos que cruzam memórias recalcadas. Tenho as mãos trémulas quando o cheiro dos cigarros, há muito apagados, me afaga o nariz.

Os carros tornam-se outra vez objectos à passagem dos estudantes. Passa um grupo de raparigas, sozinhas e despreocupadas, numa cidade que lhes permite encarar de frente as estrelas que se imaginam num céu de esperanças adormecidas.

Da TV uma frase acertada: “é cada vez mais difícil encontrar um homem de bom carácter”, num filmezeco com o nome de “mundo catita”. E neste mundo sem graça, penso nos poucos homens de carácter que conheço…
Um deles sofre longe com a solidão de um lugar que não o quis adoptar. Outro vive angustiado pelas pessoas que o rodeiam, pelo menos, oito horas diárias. Outro fuma a vida como viciado, sugando momentos efémeros sem lhes conhecer a essência, e está sempre à procura de mais. Outro repousa numa cama e questiona-se quanto ao dia de amanhã.

Em todos, incomoda o princípio destabilizador e que os deixa em conflito com o mundo dos carros conversadores no sossego das noites dos dias de semana. A esta hora, os homens dormem sozinhos, sem ter vontade de conversar com quem está ao lado, invadindo o seu espaço, impondo aos poucos a ditadura da sua individualidade, sem a tentar compatibilizar com outras.

As luzes nos prédios vão sendo cada vez menos e nas janelas sombrias, há vultos que invejam o diálogo motorizado, discreto, secreto quase, dos carros que guiam. Imaginam os temas: partilham as rotinas diárias que os proprietários lhes impõem, confidenciam amores, brigas de irmãos no banco de trás, confidências afectivas nos bancos dianteiros.

Também há carros que falam dos lugares vazios e se queixam das histórias que não têm para revelar. Outros trocam impressões de paragens pontuais. Os de mais idade, mas com menos rodagem, são os protótipos dos saudosistas, abraçados a um passado que nunca os fez felizes, mas que lhes deu uma sensação mais favorável do que o presente. E os estreados confessam ansiedade para encher a bagagem.

E, de onde em onde, os homens espreitam este diálogo fraterno, onde todos falam e ninguém se atropela. Nos bairros, nas pequenas e na grande cidade, as noites trazem horas atrás de horas para quilometrar à velocidade do treino de cada um.

Neste mundo catita, escasso em homens com carácter, povoado de pseudo-justos e convictos de felicidade inexistente, há quem acelere pelos dias convencido de ir ao volante de um maquinão, mas à noite os seus triciclos arrumam-se na garagem suja.

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