Incisões quase saradas

02:31

Eles já protagonizaram o mesmo enredo inacabado, já cruzaram os quotidianos, já acreditaram em promessas mútuas, já partilharam a mesma cama, já apostaram na certeza de uma vida em comum.

Quando o sol nascia sorridente ou o dia era de nevoeiro cerrado, eles mantinham-se bem-dispostos, sentindo o mundo na palma da mão. Se o trabalho era angustiante e os problemas pareciam um contínuo, bastava respirarem no mesmo espaço para tudo se desvanecer.

Eles pensavam conhecer-se até à última célula da alma. Expunham isso com facilidade àqueles que os visitavam amiúde. Forçavam uma empatia ficcional, num jogo de luz e sombra. Abdicavam das próprias vontades em nome de um sentimento maior e, perante semelhantes atitudes, exibiam uma aparente indiferença. Não havia divergências plausíveis.
O dia amanheceu com luz, mas sobre eles caía chuva, copiosamente. Apontavam o dedo. Atiravam com inverdades. Puxavam pelos recalcamentos. Entrincheiravam-se nas realidades inexistentes. Gritavam impropérios. Perdiam o respeito. Escapava-se o edificado de objectivos e de sonhos.

Quando o afastamento se interrompe, usam espingardas invisíveis. Ficam frente-a-frente, fazem mira e disparam certeiro. Fazem de qualquer local pacífico, um palco de confrontos maquilhados de diplomacia, mas os olhares enraivecidos chispam.

Talvez tão-somente não consigam esquecer que já tocaram a pele um do outro, que conhecem os sinais do inimigo, que dormiam abraçados e acordavam despenteados, que riam alto e gostavam de água morna. 

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