Porto dos Desencontros

15:36

Folhas de cimento quadriculadas em cima de pilares brancos e esguios de betão, que assentam num tabuleiro de xadrez onde faltam alguns quadrados pretos. Aqui joga-se o desafio permanente de esperar, seja quem chega, seja quem parte.

Ela vem cedo, todos os dias, ao principiar da tarde. No painel dos relógios explora as latitudes da ansiedade. O segurança mais antigo conta que vem aqui há um ror de anos. Aparenta ter cinco décadas de existência, mas terá bem mais pelas linhas de preocupação que se lhe cravam no rosto. Entra na porta giratória sempre na mesma direcção: os bancos em U. Senta-se e fica virada para o painel.

Nos intervalos, caminha apressada para a luz das janelas corridas que deixam ver a pista estender-se para os aviões. Gravemente, ascendem aos céus até desaparecerem do seu horizonte visual e em espécie de piloto automático regressa àquele que já é o seu lugar cativo. De braços serenamente refastelados um no outro e com um livro espesso entre as mãos, levanta os olhos sempre que alguém atravessa o pórtico da chegada.

Ninguém lhe conhece a história, embora se criem e recriem versões que a tornam lenda deste xadrez à escala humana. Numa data distante, vinha segura, de mãos dadas com quem gostava, mala pela mão e bilhete no bolso. As despedidas feitas com tempo, embora a derradeira pressentisse ser a correr e sem data ou a certeza de a repetir.

Tinha-o conhecido, por acaso, como as grandes histórias que merecem um desfecho a condizer. Um dia foi à biblioteca, precisava de alguns livros sobre anatomia, nomeadamente tudo o que a pudesse ajudar para o trabalho que tinha para entregar no final do semestre. Simpático e disponível, o bibliotecário procurou atender ao pedido. Ele, o que agora espera ver chegar, ouviu e veio entregar-lhe o livro que consultava no momento. Era sobre cardiologia de um reputado cirurgião, que ela tinha como referência e cuja obra, por ser recente, desconhecia. Agradeceu o gesto com deferência.

Voltaram a cruzar-se por entre estantes e prateleiras de livros técnicos. Ambos tinham a mesma racionalidade na explicação das coisas que acontecem no Universo, uma lógica que exclui qualquer possibilidade de imprevisibilidade. Fizeram radiografias ao carácter para testar as compatibilidades, definiram um diagnóstico comum e amplamente consensual. Partiriam para o outro lado do Atlântico em busca de mais conhecimento científico para um amor elevado ao expoente do sucesso. Porém, essa fórmula não foi mais do que uma inequação.

Anos mais tarde, depois de todas as variantes passarem pelo microscópio, decidiram aplicar a receita não medicamentosa para a doença de que padeciam: ambição e sofreguidão afectiva. Eles pensavam conhecer uma e outra, desde os sintomas à cura, redundando numa média ponderada. Avisados os familiares de que o estado era, sem qualquer reserva, nada crítico, arrumaram as vidas para voar na direcção dos sonhos. Até que naquele momento, na fila de check-in, algo nela se soergueu, expedito e indomável, assustador e desastroso.

Não havia explicações científicas nem análises racionais para o silêncio que lhe paralisou a língua. Ele não se apercebeu dos sintomas e ainda assim caminharam para o detector de metais, sem que lhe apontassem aquela bola de silêncio atravessada no pescoço, sem que percebessem que não estava bem de saúde. Nem ele notou. Nada habituados à visão não explicável do corpo, continuaram para embarcar. Só que os dedos se largaram e se abriu uma fenda sísmica no coração.


Ele perguntava incrédulo o que se passava perante essa súbita descoordenação motora. Ela nada disse, estática e sorumbática. Ele impaciente, incrédulo, exasperado, pressionado pela porta aberta do avião que o levaria longe (terá levado?). Ela sem dizer palavra como se tivesse desaprendido de repente, imobilizada naquele quadrado de quatro mosaicos pretos, à distância de dois metros dele. Pela primeira vez, os olhos dela lacrimejaram.

Ele sem compreender, agarrado a ela, forçando-a a voltar a si, mas sem efeito. Dividido entre a fatalidade de uma doença ou uma doença crónica e, de repente, sem a médica de sempre para o ajudar. Auto-medicou-se como nunca se recomenda e acabou por partir, caminhando para trás, afastando-se dela enquanto gritava pelo seu nome e esbracejava. Ele, o último a subir a bordo.

Ela a vê-lo partir, sem reagir, numa ataraxia de horas. Até que voltou para casa sem dar explicações.

Hoje, justifica-se o indizível (e não atestado pela própria). Diz-se que sentiu vertigens de um sonho maior ou de um amor para sempre. Ele optou pela doença crónica de viver sem ela, enquanto ela preferiu a doença fatal de ficar e morrer por dentro.

Desde aí, chega cedo e bem vestida. Conta-se que vive na expectativa de o ver voltar num dos muitos aviões que aqui aterram. Ela sempre muito calma, mas de olhar saltitante, em permanente estado de alerta. É de poucas palavras. Agarra-se ao livro do seu desassossego. Talvez ela acredite que ele virá de tarde, porque a manhã sempre foi aproveitada para trabalhar, porque foi bem cedo que nessa tarde partiu, levando na mala as células da sua alma, que acredita que ainda hoje observará ao microscópio.

Desconhece a sua capacidade para lhe reconhecer as feições. Agora, acredita que o poder do coração é superior ao da lupa, depois de ter levado uma vida a restituir o ritmo a corações cansados e com vontade de abandonar a prova a poucos metros da meta, ou a substitui-los por corações mais jovens, menos macerados pelas emoções: No lugar do seu há apenas um mecanismo automático responsável pelo cumprimento das obrigações vitais. Não tem problemas de respiração nem de circulação, apesar de a vitalidade não lhe caber entre as válvulas.

Nunca ninguém a viu impaciente, nem se lhe conhecem passos desesperados ou olhares cansados. Consta-se que estudou a fundo a solidão sem apresentar qualquer conclusão para as hipóteses lançadas.

Ela é a verdadeira jogadora residente deste tabuleiro gigante. Já se habituou ao frenesim continuado das malas modernas a rodar pelo chão, à excitação das crianças em parelha quando vêm ver, pela primeira vez, “aviões a sério”, com aviões de papel pela mão, já não estranha o gemer da máquina do café para gente apressada, o pessoal dos negócios forasteiros nem os turistas desorientados com o fuso horário. As línguas que se cruzam, os idiomas que não se conhecem rendem-se à universalidade dos abraços que se dão. Há lágrimas, muitas vezes.

Não se comove, tem um ar tranquilo de quem olha para tudo como uma emoção fotocopiada a preto e branco. Dentro dela viverá certamente o recorte daquele que largou da mão para o apertar no coração, sem precisar de marcar viagens ou jogar disponibilidades. Em contraluz a vê-lo partir sem sentir que seria para sempre. Talvez por isso esteja aqui, mais um dia.

Ao cair da noite, desaparece, passando ao lado da irónica placa amarelada e despropositada onde se pode ler ‘ponto de encontro’.

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