A prumo

05:45

Há nela uma serenidade tão lúcida como a luz que atravessa a janela para lhe beijar o rosto envelhecido. Caminhamos lado a lado até escolher o canto de uma sala para conversarmos. Falamos baixinho, mas o eco das palavras é inevitável.

Em redor, muitos personagens nos escutam, imóveis e silenciosos, pendurados nas paredes. Estamos protegidas dos ruídos da rua, do movimento apressado dos passos fúteis, do atropelar desumano nos passeios, da corrida dos ponteiros dos relógios.

Eu e ela temos mais em comum do que ambas imaginámos, mas essas confidências ficam para um tempo posterior, velado. Há verticalidade nas suas palavras e assertividade no olhar vivo protegido pelas lentes.

Sim, sempre soube que a forma de expressão passaria pelo papel. Era, é uma certeza até deixar de o ser. Sempre quis deixar as memórias significativas, as impressões prementes, as angústias mais rebeldes registadas de algum modo. Não para os outros, mas por esse ímpeto que nasce profundo.

Todas as letras que já desenhei são a minha impressão digital.

Sim, sempre soube olhar para os velhos com o máximo de respeito, com cortesia e humildade. Sempre quis conhecer os seus medos, os seus sonhos, as suas resignações. Acabava por transfigurar essas partilhas para assegurar o anonimato antes de as expor para anónimos.

Sempre vi nos olhos dos mais velhos um mundo mais humano do que o meu.


Nunca soube como gostar dessa cidade suja nem das suas gentes agrestes. Desejava, apenas, o regresso ao lugar que era seu desde sempre, às vozes que identificava à distância, à magia dos rituais consanguíneos, ao descanso do travesseiro nas noites brancas.

No meu universo, feito de palavras que se sentem como abraços, há uma quietude que permite encontros demorados para esfolar saudades. Há uma proximidade rija que substitui os casacos grossos em dias de Inverno. Há a simplicidade dos pormenores e meiguice morna. E sempre acreditei que a felicidade passa necessariamente por mim aqui.

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