O brinquedo nunca morre

15:31


Ele ficará pendurado no tempo, enquanto a corda onde se segura aguentar. Ele mantém-se firme e paciente. Ele é a metáfora do seu criador.

Recebeu-me, com o seu ar bonacheirão por detrás dos óculos redondos e um sorriso ligeiro, no local encantado onde cristalizava o pretexto que fazia os petizes de outros tempos felizes. Havia cores garridas, madeiras lisas e vários objectos nascidos delas. Havia, ali, vida à espera de ser agarrada. E eu senti-me privilegiada por percebê-la.

Foi como espreitar um mundo que já não era meu contemporâneo e ao qual acedi apenas pelas palavras que ele me fez chegar. Eram carregadas de sensações radiantes e lembranças quentes, irrepetíveis.

Queixou-se dos problemas de saúde, mas sem aborrecimento. No fundo, foram o passaporte para descobrir a sua veia artística, para chegar ao acto criativo que fez as delícias de muitas crianças.

Começou a brincar com a memória e a habilidade e, assim, foram nascendo esses brinquedos em madeira, que pintava de cores alegres, como devem ser preenchidos os dias da meninice.

Eu perdia-me por aquela espécie de cais de embarque em ponto pequeno, onde se perfilavam variedades de brinquedos à espera de se sentirem abraçados por mãos que lhes roubassem a solidão e que os tornassem protagonistas de aventuras no recreio, no quarto, na rua, algures no mundo.

Ele sabia construí-los e tinha a dolorosa consciência de não ter com quem partilhar o seu saber. Contudo, não desistia de fazer brinquedos, mesmo percebendo que os meninos e as meninas de hoje crescem rodeados de uma parafernália tecnológica. Tinha essa esperança, hermética e segura, que atraindo-lhes o olhar com as cores vivas e deixando tocar, teria o cliente de palmo e meio conquistado.

Era nas andorinhas, algumas vestidas de acordo com o fervor clubístico, que tinha mais sucesso. Faziam furor fosse pela cor, pelo movimento ou até pelo barulho. Os carrinhos de bonecas, os cavaleiros, as camionetas, os matraquilhos, os gregórios ou os bonequinhos de andar à roda também não deixavam de suscitar curiosidades entusiasmadas.

Todos esses brinquedos, pensados e executados ao mínimo pormenor, eram testemunhos das suas lembranças de menino. E ele quis (e conseguiu) deixá-las para outras gerações. Entretanto, a filha e a neta entraram na oficina. Elas, seguramente, gostavam de vê-lo entretido naquelas lides tão especiais e ele reflectia nos brinquedos o sorriso delas.

Pacientemente, explicou-me os materiais que usava, o que implicava fazê-los. Confessou a tristeza que sentia nas feiras quando as crianças ficavam embeiçadas pelo brinquedo e os pais, por não terem dinheiro, não lhes satisfaziam o desejo. Lamentou, ainda, que aqueles brinquedos de antigamente morreriam quando as suas mãos se tornassem inertes.

Antes de abandonar a oficina, não resisti. De olhar preso na panóplia de brinquedos, informei-o da intenção de levar um. Então, ele tratou-me por menina e disse apenas: “escolha o que quiser”. Então, a menina, ali a projectar-se como mãe, namorou os brinquedos por alguns minutos.



Ao fim de alguns passos para cá e para lá, decidi-me pelo trapezista empoleirado em duas andas vermelhas. Naquele momento, associei aquela imagem com a exigência desumana dos dias que correm, em que vivemos empoleirados no medo de cair, de falhar, de não sobreviver. E ocorreu-me, pois, o desejo de que aquele brinquedo, que condensava o saber e a memória daquele homem, chegasse, um dia, às mãos dos meus descendentes.

Ele apresentou-me o gregório, que se exibiu para mim dando uma pequena acrobacia, um movimento selado com o sorriso do seu criador.

Hoje, contemplo o gregório. Encostado à parede verde, tem vistas para a rua e ora reflecte a luz solar ora a luz difusa do candeeiro. Percebo, então, a naturalidade e o silêncio com que ele se tornou habitante do meu quarto desde esse dia.

Tal como os seus congéneres naquela oficina, talvez ele seja uma passageiro solitário que aguarda ver chegar quem lhe estenda a mão e lhe indique novos trilhos. Até lá, admiro-lhe a verticalidade, a cor viva, o movimento familiar e, sobretudo, a memória que evoca daquela manhã.

Ontem, soube, assim de supetão, que o seu criador não repetiria o feito. E uma vaga de tristeza atravessou-me o peito…

You Might Also Like

4 apontamentos

Total de visualizações

Procurar no blogue