Microcosmos

15:25

Deito-me sobre o chão do meu quarto. O tapete às riscas é a minha única perspectiva.

Sucumbo ao cansaço dos dias vazios. Hoje, não luto contra o desânimo. Estou esgotada e, simplesmente, não me obrigo a ter esperança. 

Dói-me o pulso direito, não pelo cansaço de escrever, mas pela inércia desencadeada pela desinspiração. 

Os vizinhos do andar de baixo são tão barulhentos. Gritam, impacientes, com os três filhos. Fazem-no alternadamente, como se fossem protagonistas de uma ópera. Ambos estão desempregados. Talvez se irritem por não terem o que pôr nos pratos. Talvez estejam angustiados com as dívidas ao banco. Talvez não saibam respeitar o silêncio alheio. 

Eu só preciso de paz. É a minha necessidade absoluta. Eu só quero ficar quieta. É a minha prioridade abandonar-me à completa solidão e desfazer-me das memórias mais recentes. 

O telemóvel não parava de tocar. Rasguei-lhe as entranhas e removi-lhe a bateria. Há pessoas que ainda se preocupam comigo, mas que não aprenderam que preciso deste tempo suspenso. 

É de mim hibernar na Primavera e bater asas quando o frio se cola aos ossos. Vou pela necessidade de inverter a rotina, de ser contrária à multidão, de ficar acordada enquanto os outros tentam sonhar. 

Sinto o ritmo pausado do meu coração, como se também ele quisesse abrandar... Em cada poro, uma ilusão descalça. A cada inspiração, a vontade férrea de escrever naturalmente. 

Expiro depressa, na ânsia de conseguir chegar à ideia que me foge. Puxo o bloco, preparo a caneta e, num ápice, as minhas mãos em concha acabam com a lisura enervante do papel em branco. 


As horas desfilam e nem sinal dela. Sei exactamente a posição que escolhe quando lhe falta a inspiração para escrever. Enrosca-se no chão, cola o ouvido à vida dos vizinhos e, no íntimo, dirige-lhes as culpas pela sua frustração.

A Leonor é uma escritora com uma carreira consolidada que, a cada novo romance, sofre essa espécie de tormenta que se pega à pele, trepando da ponta dos dedos aos braços desmotivados.

Sobre ela recai uma estúpida pressão. Auto-imposta, diria. Tem sempre aquela ânsia de não repetir o que já fez ou fugir àquilo que os outros já escreveram. Chega a ser doloroso imaginá-la a sofrer como se tivesse falta de ar. E sempre, sempre à distância. 


Por mais que o tempo firme o nós, nestas alturas, duvido se esta é a mesma Leonor que se deita ao meu lado e conta as peripécias das suas personagens ainda antes de as passar para o papel. Aquele ar apaixonado com que fala, o entusiasmo infantil com que espera o elogio da genialidade.

Por norma, exige sempre as críticas, porque quer chegar à obra-prima. No entanto, sabe que não consegue pular esta fase de falta de inspiração sem pôr em causa o talento que todos lhe reconhecem e que ela desconfia que lhe é quase inato.

Detesto ficar arredado desta etapa, onde sei que ela só precisava do meu abraço, da minha crítica feroz para que se alimente, apanhe ar, beba um copo com os amigos e conviva com a família. No fundo, que se deixe envolver pela vida real. Amo-a, mas a cada tentativa de chegar à fala é como se duas peças contíguas deixassem uma folga crescer entre si.

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