Incredulidades

14:52

Caminho por entre estas paredes que cheiram a sofrimento desinfectado. Cada passo acentua o medo, exalta a dúvida do que vou encontrar. Viro à direita, vejo o 24 na porta entreaberta e a cortina corrida, lá ao fundo. Um vulto debruçado sobre a cama onde o meu avô permanece quieto e vacilante. Aproximo-me, sempre na esperança de o ver com aquele sorriso matreiro.

- Bom dia! Então, avô, pronto para irmos beber uma limonada?

Ele ri-se, a custo. Queixa-se das dores que lhe trucidam os rins.

- Não tarda nada o senhor Manuel está a saltar desta cama para provar um bom cozido à portuguesa -, diz uma voz suave que não estranho.

Levanto os olhos para, entre a surpresa e o pânico, confirmar o nariz adunco, num rosto oval sobre o qual recaem cabelos negros. Conheço-lhes a rebeldia. Sei de cor os contornos piscianos tatuados no seu ombro esquerdo. A Rita, dez anos depois, no leito de morte do meu avô.

- Rui, ao tempo… Não fosse esse olho azul e o outro verde e já quase não te reconhecia – observa, numa aparente serenidade.

Sim, de facto, estou gordo, cortei o cabelo, tenho algumas brancas, e trago no coração uma outra mulher. Esforço-me por esconder os nervos e devolvo ironicamente:

- Caramba. Quanto vale os meus olhos serem diferentes... Se me cruzasse contigo na rua só eu te identificaria.

- Sim, talvez…

O tom calmo e até indiferente dela a ecoar-me nos ouvidos. As memórias à solta, a desarrumar o que levou tantos anos a aceitar.

O meu avô pergunta-me se já conhecia a voluntária e percebo-lhe a curiosidade de saber de onde e desde quando. Atropelo-lhe a intenção de tirar mais nabos da púcara, enquanto encaixo a nova informação. A Rita é voluntária? Ela que era a pessoa mais egocêntrica e egoísta da minha turma, filha única e mimada, sedenta de todas as luzes para não se rever na sua sombra.

- Fazes voluntariado aqui?

- Comecei no Verão passado, mas será para continuar. Tem sido uma experiência tão gratificante… Poder ajudar os outros fez-me descobrir tanto em mim.

- Confesso que não te imaginava nesse papel.

O meu avô interrompe-me para lhe lançar um galanteio:

- Ora, Rui! Qualquer um ressuscitaria ao ver este olhar tão dócil e belo debruçado sobre si. Se eu fosse mais novo, garanto-lhe que mudava essas ideias de ir para as Carmelitas.

Novo soco no estômago. Engulo em seco. Ela esquadrinha-me pelo canto do olho, tal como fazia quando me queria seduzir. Disfarço o choque, a estupefacção, a incredulidade, estendendo o invólucro para o meu avô.

- Sabores adocicados, em tons de branco. Não sei de quem herdaste tão bom gosto – atira-me o meu avô, com um olhar cúmplice.

Longas tardes a jogar à caça do chocolate branco. Escondia-me os bombons nos sítios mais inusitados, em igual número daqueles que ele, refastelado no sofá, ia degustando. Dava-me pistas, espaçadamente. Irritava-me tanto quanto me aguçava o apetite. Nascia, assim, um vício para toda a vida.

Vejo-a segurar na caixa dos chocolates, enquanto o meu avô se delicia com o terceiro bombom.

Na primeira vez que a convidei para sair, arrisquei e levei-a a uma chocolataria. Deveria ter percebido logo que quando manifestou a preferência por chocolate preto, nunca seríamos felizes para sempre. Ela levava um vestido que lhe deixava as costas à mostra e exibia um sorriso tão largo… Contava as anedotas que o pai lhe tinha ensinado e ria sem se importar com a vida. Era impulsiva como a liberdade que, um dia, se refreou.


O monitor de sinais vitais esguicha. O som em contínuo, linear, surreal. Ela do outro lado da cama, com os olhos pregados nas minhas lágrimas.

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