Até ao risco...

14:52

Eram de várias cores e tamanhos, espalhados aleatoriamente sob o tampo de madeira branca. Assim, dispersos ao acaso, fizeram-me lembrar o micado que me roubava paciência e destreza em algumas tardes quentes de Verão. Mas, naquela noite de aragem fresca que se insinuava pela janela entreaberta, só conseguia antever um outro exercício.

Ele, já com um lápis de papel em riste, folheava, com a mão desocupada, o caderno que a mãe lhe tinha comprado. Lá dentro, espreitavam páginas esbranquiçadas onde moravam contornos de animais, de bonecos, de astros, de flores.

Ele, de olhar astuto, desafiava-me a pegar num lápis também. Para facilitar a minha indecisão, ele escolhia o lápis e o espaço que me caberia preencher com aquela cor. Ele, de matreirice no sorriso, pintava energicamente enquanto me olhava de soslaio.

Inacabada aquela pintura a quatro mãos, decidia mudar de página e escolher outro desenho. Então, o ritual repetia-se: escolhia os lápis de papel para ambos, as cores e os espaços que ficariam para cada um.

Até que, do penhasco etário onde me encontro, achei sensato “ensiná-lo” a pintar... Exemplifiquei como pegar no lápis amarelo e pressioná-lo na zona do papel que desenhava a mão daquela figura carrancuda. Em voz terna, disse-lhe que o lápis não podia passar aquele traço preto que delimitava o tal membro. Pintei até ao risco com o mesmo esmero que aplicava quando era menina e ainda não tinha descoberto o admirável e misterioso mundo das letras. Lancei-lhe um olhar rápido e vi-lhe o rosto atento, mas contrariado.

“Não, não!” – irrompeu ele. Agarrou num lápis verde e começou a riscar sem ligar aos contornos. Voltei, naquele tom melífluo irritante, a insistir para “pintar até ao risco”. Mas ele ria-se e continuava na sua empreitada sem freio, ensinando-se que realmente eu não estava a ensinar-lhe coisa nenhuma.

Naquele ar revolto, ele agigantava-se sobre o caderno de desenhos, sobre aquele império de lápis de papel e sublinhava a minha pequenez ao querer impor-lhe limites. É evidente que ele deve pintar como a vontade lhe ordena, sem considerar a harmonia das cores ou a homogeneidade dos traços.

Sim, ele deve e pode navegar sobre a folha do papel com irreverência, ao leme de um lápis de papel que lhe devolve traços coloridos à revelia das convenções.

E enquanto me entrego, por instantes, a estes pensamentos, as minhas mãos seguram um lápis inerte e os meus olhos admiram aquele petiz que, entusiasmado, me dá outro lápis e me instiga a pintar. Para ele, talvez o problema daquela minha passividade momentânea estivesse na cor, no tamanho ou na ponta pouco afiada do lápis.

Regresso, entre a satisfação contrafeita, àquela pintura a quatro mãos e sorrio-lhe. Vejo-me a pintar até ao risco, com serenidade, sempre no mesmo sentido e com a mesma cor. Vejo-me a repetir até à exaustão esse método artístico, sem me deixar contagiar pelo exemplo dele.

Vejo-o a pintar além dos traços, a deixar contornos incompletos, a fazer riscos fora do desenho, a trocar de cores as vezes que lhe apetece, a pintar ora para a esquerda, ora para a direita, ora para cima, ora para baixo, ora na diagonal, ora em todos os sentidos. Vejo-o a virar a página e (re)começar sempre de forma diferente.  

Vejo-o a olhar para cada uma das suas obras-primas cheio de orgulho e a exibi-las aos meus olhos como que para me mostrar que “é assim que se pinta”. Vejo-me a ser adulta e a invejar-lhe aquela liberdade...

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