Eram de várias cores e tamanhos, espalhados aleatoriamente sob
o tampo de madeira branca. Assim, dispersos ao acaso, fizeram-me lembrar o micado
que me roubava paciência e destreza em algumas tardes quentes de Verão. Mas, naquela
noite de aragem fresca que se insinuava pela janela entreaberta, só conseguia
antever um outro exercício.
Ele, já com um lápis de papel em riste, folheava, com a mão
desocupada, o caderno que a mãe lhe tinha comprado. Lá dentro, espreitavam
páginas esbranquiçadas onde moravam contornos de animais, de bonecos, de astros,
de flores.
Ele, de olhar astuto, desafiava-me a pegar num lápis também.
Para facilitar a minha indecisão, ele escolhia o lápis e o espaço que me
caberia preencher com aquela cor. Ele, de matreirice no sorriso, pintava
energicamente enquanto me olhava de soslaio.
Inacabada aquela pintura a quatro mãos, decidia mudar de
página e escolher outro desenho. Então, o ritual repetia-se: escolhia os lápis
de papel para ambos, as cores e os espaços que ficariam para cada um.
Até que, do penhasco etário onde me encontro, achei sensato “ensiná-lo”
a pintar... Exemplifiquei como pegar no lápis amarelo e pressioná-lo na zona do
papel que desenhava a mão daquela figura carrancuda. Em voz terna, disse-lhe
que o lápis não podia passar aquele traço preto que delimitava o tal membro.
Pintei até ao risco com o mesmo esmero que aplicava quando era menina e ainda
não tinha descoberto o admirável e misterioso mundo das letras. Lancei-lhe um
olhar rápido e vi-lhe o rosto atento, mas contrariado.
“Não, não!” – irrompeu ele. Agarrou num lápis verde e começou
a riscar sem ligar aos contornos. Voltei, naquele tom melífluo irritante, a insistir
para “pintar até ao risco”. Mas ele ria-se e continuava na sua empreitada sem
freio, ensinando-se que realmente eu não estava a ensinar-lhe coisa nenhuma.
Naquele ar revolto, ele agigantava-se sobre o caderno de
desenhos, sobre aquele império de lápis de papel e sublinhava a minha pequenez ao
querer impor-lhe limites. É evidente que ele deve pintar como a vontade lhe
ordena, sem considerar a harmonia das cores ou a homogeneidade dos traços.
Sim, ele deve e pode navegar sobre a folha do papel com
irreverência, ao leme de um lápis de papel que lhe devolve traços coloridos à
revelia das convenções.
E enquanto me entrego, por instantes, a estes pensamentos,
as minhas mãos seguram um lápis inerte e os meus olhos admiram aquele petiz
que, entusiasmado, me dá outro lápis e me instiga a pintar. Para ele, talvez o
problema daquela minha passividade momentânea estivesse na cor, no tamanho ou na
ponta pouco afiada do lápis.
Regresso, entre a satisfação contrafeita, àquela pintura a
quatro mãos e sorrio-lhe. Vejo-me a pintar até ao risco, com serenidade, sempre
no mesmo sentido e com a mesma cor. Vejo-me a repetir até à exaustão esse
método artístico, sem me deixar contagiar pelo exemplo dele.
Vejo-o a pintar além dos traços, a deixar contornos
incompletos, a fazer riscos fora do desenho, a trocar de cores as vezes que lhe
apetece, a pintar ora para a esquerda, ora para a direita, ora para cima, ora
para baixo, ora na diagonal, ora em todos os sentidos. Vejo-o a virar a página
e (re)começar sempre de forma diferente.
Vejo-o a olhar para cada uma das suas obras-primas cheio de
orgulho e a exibi-las aos meus olhos como que para me mostrar que “é assim que
se pinta”. Vejo-me a ser adulta e a invejar-lhe aquela liberdade...