Um "Passeio de Escuta"

15:32

Acordo com o som agudo do despertador e ouço o toque leve dos meus dedos no interruptor gerar um som curto. Afasto os lençóis num som abafado e quase imperceptível. Piso o tapete num roçar breve e baixinho para procurar os chinelos. O contacto com o chão causa um som mínimo enquanto me aproximo da janela. Corro o cortinado e escuto um som estridente. Abro a persiana repentinamente e escuto um som de altura semelhante ao anterior. Abro o guarda-fatos e com ele desencadeio o rangido fininho da porta. Tiro as calças do cabide num puxar cujo som insignificante é prolongado. Fecho a porta e um som mais forte ecoa pelo quarto em silêncio. Procuro uma camisola depois do assobio agudo da gaveta. O puxador da porta do quarto solta um som aflautado e, simultaneamente, oprimido. Dirijo-me para o WC e ouço o ressonar profundo do meu pai. Satisfeita uma necessidade imediata, puxo o autoclismo que liberta uns sons esquisitos, numa espécie de remoinho de sons graves e menos graves. Escuto o pingar da torneira do lavatório antes de abrir a da banheira. A água do chuveiro cai num som sibilante. Puxo a toalha e o som desse movimento confunde-se com o da água a esvaziar-se da banheira. De seguida, o som friccionado da toalha na minha pele e a voz fina da minha mãe a perguntar o estado do tempo. Falo um pouco mais alto para lhe responder porque a distância o exige. O som da escova de dentes é baixo e monótono; o do secador de cabelo é intenso e irritante e o da escova que passo pelos cabelos é ínfimo. O som agudíssimo do spray da laca quebra o silêncio da casa de banho.

Volto ao quarto para fazer a cama e o esticar dos lençóis num som baixo e duradoiro, pautado pelo som cadenciado do tiquetaque do relógio. Vou até à cozinha e lá procuro o comando do televisor que ao carregar, não desprende nenhum som perceptível. Com a televisão ligada, libertam-se vários sons: uma voz feminina, fininha e pausada, debita um discurso noticioso antes de se começarem a visualizar imagens de um político em campanha a proferir um discurso até ficar rouco, de apoiantes que agitam as bandeiras no ar aos berros, um som neutro aquando da apresentação de sondagens. Mudo de canal, há desenhos animados: sons típicos de uma arma fictícia na mão do protagonista: ligeiros e graves. Novo zapping e paro nos canais espanhóis, num deles, um apresentador de voz grave e calma fala de uma explosão; seguem-se imagens com sons de choros agudos e desesperados. O som afinado do microondas lembra-me que o leite já aqueceu e esqueço a TV. Os cereais caiem numa tigela de porcelana; percebo sons curtos e ríspidos.

Vou calçar-me e saio. O som agudo dos tacões das botas nos degraus de mármore incomoda-me. Ouço o tilintar das chaves na mão até chegar ao portão que chia ao de leve quando o abro; quando o fecho, solta um ruído mais intenso, porém rápido. Os sons graves dos cães a ladrar quando ouvem o motor do carro a trabalhar, em sons pesados e esforçados no início. Já em marcha, faço uma travagem forçada e o chiar fininho e desagradável dos travões. Dentro do veículo, somente as vozes femininas e masculinas dos animadores nos programas da rádio. Antes de chegar ao café, escuto a buzina aguda de uma mota, cujo condutor é um conhecido que me chama em tom alto e brincalhão. O barulho do café enche-me os ouvidos e apenas consigo diferenciar o som agudo e penetrante da máquina do café e das chávenas a pousar nos tampos de vidro das mesas. Ao puxar a cadeira, um ruído arrastado. Enquanto espero pelo café, o som fininho do tamborilar apressado dos meus dedos na mesa. Do murmúrio das conversas alheias, distingo uma voz esganiçada. Procuro os trocos no bolso para pagar e escuto sons desordenados. À saída, corro o fecho do casaco: um som agudo. Na rua escuto três crianças a guinchar em alta histeria e, ao longe, o canto harmonioso dos passarinhos.

Hoje decidi ir às compras. Ao entrar numa loja, uma música relaxante invade-me os ouvidos até ser cortada pela voz calma da empregada que me interpela. O chiar dos cabides que faço correr pelo varão de ferro. Peço para embrulhar: o som cortante da tesoura e o som subtil do cortar da fita-cola. Já o som produzido pelo dobrar do papel de embrulho é difícil de descrever. Por fim, o som agudo da gaveta da máquina registadora. Ao pousar os sacos de papel e os de plástico no carro, o barulho misturado de sons abafados e expansivos. O almoço obriga-me a passar pelo talho. Os sons agudos do afiar da faca e os sons secos do cortar da carne constituem a atmosfera auditiva.

De volta a casa, ligo o PC que solta um som breve e agudo. Enquanto escrevo dou-me conta do som ritmado das teclas sob a pressão contínua dos meus dedos: um som curto e constantemente repetido; uma série de sons curtos que parecem um único som. De repente, o telefone toca. Corro pelas escadas e o ranger da madeira intensifica-se. Do outro lado fala-me uma voz infantil e mimada, no final, o som curto de pousar o aparelho. Alguém trata do almoço e ouço o chiar agudo da panela de pressão. Já na cozinha, escuto os tons sibilantes da água das batatas a ferver. Ponho a mesa e o som dos pratos ao embater na mesa de pedra é agudo e curto. Os copos de vidro em contacto uns com os outros, quando os retiro do armário, originam um tinir agudo. Pouso também os talheres, acabando com os seus sons altos. A campainha toca, espalhando pela casa um som intenso e agudo. Após o almoço, a lavagem da loiça permite-me escutar o som médio do cair da água sobre os pratos. O esfregar da esponja produz um som arrastado. Ao colocar as diferentes peças no escorredor o som agudiza-se ligeiramente. Aspiro o chão e o volume de som aumenta, repercutindo-se pelo espaço em tons graves. O som de torcer a esfregona no balde é denso e baixo. O som agudo e repetido por duas vezes, que vem do telemóvel, alerta-me para uma SMS.

Decido ir até à aldeia. Durante a viagem, só a música do rádio me faz companhia: uma melodia de sons regulares e agradáveis ao ouvido. Entretanto, ao descer a estrada perde-se a frequência e, depois de uns sons desconexos que me fornecem essa indicação, pressiono o off. Então, o som lento da minha respiração deturpa-se com o som intenso do mascar da chiclet. Ao estacionar, cessa o ruído do motor do carro. Em direcção a casa, escuto barulhos minimais de bichos pelos quintais e que, pouco depois, é silenciado pelo som agudo e intenso do altifalante do carro do peixe. Ao atravessar a rua, o zurrar teimoso e repetitivo dos burros ouve-se através de uma porta de madeira. Um vizinho bate com um martelo e a tábua queixa-se num som comprimido. O zumbido acelerado de algumas moscas em redor do caixote de lixo e o miar piedoso de um gato vadio perante o latido grave de um cão que o persegue. Empurro a porta de madeira da casa da minha avó e desencadeio um rugido pesado e longo. Porque o frio regressou, ouço o crepitar da lenha na lareira. Alguém grita na rua, um som que me é bastante distante mas audível, embora não consiga distinguir a sua tonalidade.

De regresso à cidade ao final da tarde, escuto o seu bulício motorizado e grave. Depois do jantar, uma ida ao café obriga-me a ouvir os cubos de gelo baterem contra o vidro fino dos copos de whisky, em sons agudos e curtos, intervalados. Há frases segredadas entre dois dos presentes na mesa, no entanto, o volume de som é muito menor. Uma voz doce contrasta com outra grave na mesa ao lado. O burburinho das conversas, em tons médios, mistura-se com a música de fundo instrumental. O resultado não é um som harmonioso, mas pode dizer-se que é tolerável e habitual. Num sofá mais afastado, escuto o som curto e desenfreado de palmas. Vozes juvenis cantam os “parabéns” o mais alto que podem. Posteriormente há bramidos agudos de plena euforia.

Na discoteca apinhada de gente, sucessões de faixas musicais, cujo volume de som é tão intenso que as torna quase ensurdecedoras e obriga a que cada troca de palavras seja feita aos berros. Dou por finda a noite e abandono a discoteca ainda com os seus sons agitados a ressoarem-me nos ouvidos. Ao chegar a casa, a chave roda na fechadura num som relativamente grave e rápido. Depois… apenas o silêncio.

(este texto surge no âmbito de uma proposta de trabalho para a cadeira semestral de Teoria do Som)

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