O regresso tem sempre coisas inalteráveis

17:55

Mal sai do autocarro e abandonei a garagem, senti o ar saturado, a poluição de uma grande cidade. Depois, vi o sol escurecido pela mediocridade dos edifícios. Voltei à direita e continuei a caminhar. Percebi as coisas no mesmo sítio, iguais a alguns meses atrás, exactamente iguais, sem uma alteração mínima. Tudo na mesma…

A praça povoada de pombas que procuram no chão de infértil algum alimento e de velhos sentados em cadeiras presas no cimento. Uns lêem um jornal que não é o de hoje. Outros olham para algum lugar que mais ninguém vê. Alguns têm caras feias, mesmo assustadoras. Com isto, apercebo-me que a falta de civismo e de o mínimo de compreensão continuam. Aposto que se levasse toneladas às costas, ninguém iria dar-se ao imenso e difícil trabalho de se desviar ligeiramente do passeio para não me dificultar a passagem. Acho que ainda não está para breve que percebam que basta que tomem um lado no passeio e deixei o outro livre, que abandonem o trajecto do ziguezague porque só atrapalha as ultrapassagens.

Dou por mim já a descer a rua sombria. As montras das lojas quase invariáveis. Só as mãos dos mendigos que se estendem à passagem dos transeuntes apressados ficaram ligeiramente mais queimadas pelo sol do verão. Se eles não precisassem mesmo não pediriam, não esticariam as mãos num gesto de clemência por uns míseros trocos que gastamos em tabaco, em guloseimas, em ganchos, em copos, em roupas caras, em farras, etc. Podemos matar a fome por uns instantes a um desgraçado, mas preferimos saciar a nossa saciedade numa opulência que chega a ser ridícula. Podíamos tão somente endereçar-lhe um sorriso selado com esperança em vez de lhe votarmos um olhar de desprezo e/ou uma cara de nojo e repugnância. Se estão sujos não é porque não possam ter uma alma bem mais limpa do que muitos de nós.

Cruzo com gente de todo o tipo: avós armadas em pop stars, vaidosas e extravagantes; empresários engravatados com laivos de exibicionismo de cada vez que atendem o telemóvel de última geração; adolescentes de cigarro ao canto da boca a aspirarem ser adultos; crianças que arrastam as mochilas e que são, por sua vez, arrastadas pelas mãos das mães; marginais encostados em paredes riscadas; semáforos que mudam de cor e pessoas a desrespeitá-los; casais viciados em olhares cúmplices; desocupados que descansam em esplanadas; prostitutas que se oferecem em esquinas imundas; pessoas com deficiência física observável; polícias que fecham os olhos às infracções de conhecidos que lhes acenam.

Vejo também as varandas com roupa estendida nas grades e janelas abertas. Começa a cheirar a almoço. E perdi a fome, perdi a noção do que vim fazer aqui, perdi a vontade de permanecer, perdi-me nesta cidade labiríntica e deforme. Não quero ficar. Tirem-me daqui! A miséria humana sempre me perturbou e, nesta manhã fresca, conseguiu fazer-me desejar ignorá-la para não sofrer.

You Might Also Like

5 apontamentos

Total de visualizações

Procurar no blogue