Renúncia inconfessada

16:32

Já não posso. Não aguento mais ser a espectadora que assiste, com regular frequência, à tua solidão dentro da solidão. Já não és capaz de estabelecer um vínculo de interactividade com o público reduzido, por isso só sobro eu.
Vou encontrar-te o olhar perdido atrás da vidraça de um pequeno café, numa rua movimentada e mal cheirosa. O teu olhar alcança além das paredes velhas dos edifícios. Aproximo-me e nem te apercebes.
Estás tão sozinho que me deixa muito angustiada não poder fazer nada para contribuir que isso não te seja tão penoso. Os outros acabam o trabalho e vão para casa onde são esperados pela família. Os outros sorriem porque amam e são correspondidos. Os outros têm um olhar firme porque sabem o que querem da vida e fazem de tudo para consegui-lo. Tu acabas o trabalho e há uma qualquer mesa, indeterminada e indiferente, à espera num café escolhido aleatoriamente. Essa tua frieza anímica, que te enregela o sorriso, não te deixa partilhar o teu tempo e a tua pessoa com ninguém.
Não sei como lidar contigo. Permites que a vida passe literalmente por ti sem tentares preenche-la com algo que te dê alegria. Vais sofrendo a erosão do tempo: há sinais de envelhecimento na tua pele, o que mais se destaca do teu rosto são uns olhos encovados que renegam a esperança, expulsam o entusiasmo, são impiedosos perante a euforia alheia. Desprezas muito dos que te rodeiam pelo simples facto de não saberes como te relacionar e de teres medo que eles percebam o teu modo de vida, mesquinho e sobretudo triste...
A tua companheira da estrada da vida traz-te pela mão, abraça-te avidamente, prende-te com laços fortes a um estado de não ser, de não ter, de não viver, de não sonhar. Este último facto é que me causa uma grande confusão. Como é possível não procurares, pelo menos, os sonhos da juventude escondidos no fundo de ti? Como é possível não traçares objectivos, cuja luta da concretização te anime os dias? Como é possível deixares-te levar por uma vida que a sociedade te criou por necessidade prática? Como é possível viver cada dia como um frete? Se não te conhecesse diria que era impossível... Mas para todas as regras há excepções; neste caso (e infelizmente), tu vieste a provar seres uma.
Estamos sentados lado a lado, a travar uma conversa comum e a desenvolver pensamentos paralelos. Não consegues tolerar a minha exaltação com cada coisa mínima que partilho contigo. Não consegues autorizar que te deixe envolver nessa alegria... Não demonstras que ficas satisfeito com os meus triunfos e jamais te passaria pela cabeça o quão bem eu sei que tens um terrível orgulho em mim.
Eu sinto-me a pessoa mais próxima de ti, porque não pertenço àqueles que te julgam sem tentarem compreender a tua maneira de ser e, consequentemente, a tua maneira de agir. Também eu nunca fui capaz (nem serei) de te dizer que, embora tenhamos experiências de vida e faixas etárias ligeiramente diferentes, sei o que sentes de cada vez que alguma família entra no mesmo café onde tu estás abandonado à solidão de um jornal e de uma imperial, numa mesa solitária; de cada vez que passa um casal de namorados pela rua onde tu estacionas uns minutos para fumar o resto do cigarro Marlboro; de cada vez que uma criança pula à frente dos teus olhos e tu sentes-te pesado demais… Ambos nos sentimos sós. O que nos distingue é a atitude que assumimos. Eu prefiro acreditar que é apenas uma situação passageira, necessária, circunstancial e, pontualmente, propositada. Tu és uma vítima da solidão e és também masoquista, porque encaraste desde muito cedo que esse seria um estado permanente, um estilo de vida, um modo de estar irreversível e eterno. Há sempre a oportunidade de mudarmos a nossa vida!
Uma coisa é estar-se sozinho mas assumir, com consciência, a necessidade de estar com alguém, a necessidade de confessar as faltas que nos enfraquecem, a necessidade de termos um sentimento de pertença a algo, a uma pessoa e/ou a um lugar.
Tenho-te como um exemplo vivo daquilo que me poderá acontecer a mim daqui a uns anos e entro em pânico só de imaginar. Não quero ser assim! Só de pensar que ninguém se preocupa comigo, se estou bem, se adoeci, se tenho fome, se tenho vontade de passear, se sinto a pressão da exigência, se vou aparecer nesse jantar, se tenho disposição para ir a essa festa, etc. sinto-me desmoronar. Quero manter as pessoas que gostam de mim, pois serão elas o meu escudo protector contra a solidão, e tu devias fazer o mesmo!

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