Percursos

16:34

Jantei e fui dar um passeio. Normalmente, a digestão é sedentária mas hoje fui caminhar um bocado. Uns metros depois quase tropeço num farrapo humano caído no chão, imóvel. Abeiro-me e certifico-me que se trata de uma pessoa e que está viva. Por momentos, pensei que estivesse morta, mas como se contorceu e respira demoradamente confirma o contrário. É incrível como o álcool arruína a nossa auto-estima, afoga o nosso amor-próprio. Começo a sentir a naúsea da impotência. Não me posso aproximar e tentar ajudar porque a pessoa pode levar isso como uma afronta e reagir mal. Não posso denunciar a situação a nenhuma instituição, porque ela iria revelar um desinteresse que me amedrontaria.
Não consigo desligar-me da imagem, contudo sigo em frente… Sim era só um desconhecido. Não, não posso utilizar frases feitas para me desculpar pelo meu comportamento. Fico a pensar na história de vida daquela pessoa… O que lhe terá acontecido para chegar àquele ponto? E se morresse ali? Haveria alguém para chorar a sua perda? Talvez até ficasse pregado ao chão até à manhã seguinte em que os comerciantes teriam que desviar o corpo para abrirem as lojas, então aperceber-se-iam do sucedido, chamariam a polícia sem sentir o pavor de ver aquele homem morto. Será que alguém se encarregaria de lhe dar alguma dignidade no momento de ser enterrado? Teria direito a uma flor campestre sobre a campa?
Até eu própria continuei o meu passeio e deixei aquele homem abandonado à sua sorte. Eu sei que não poderia fazer muito mais, ou melhor eu não sabia mesmo o que fazer…

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