Em busca de cumplicidade

02:18

Tu que me observas de longe, desse balcão abandonado, olhas para a minha mesa (ainda vazia) e deixaste ficar, esquecido a olhar. Agastado pela solicitação dos dias, dás a mão ao copo, num gesto de ternura e protecção. O teu conforto, no final de cada dia, está aí, nessa substância de cor acastanhada que te levará para longe a consciência plena daqui a algumas horas, altura em que irás para casa e adormecerás no sofá ou na cama de casal. Então a substância acastanhada aquecer-te-á quando sentires o corpo frio da mulher que se deita a teu lado. Tu abandonaste com legitimidade a essa ilusão.

A firmeza da tua voz faz com que a minha intuição me diga que és alguém que sabe aquilo que quer e depois o procura com convicção. O que geralmente acontece é que as pessoas passam o tempo a procurar sem saber se é exactamente isso que procuram, ou melhor, se realmente é isso que querem. Mas, neste momento, o teu pânico é que sabes que te falta algo e não consegues defini-lo.

Confessas ao gelo, que bate contras as paredes do copo apertado nas tuas mãos, que te sentes incompleto. Tens uma mulher que te adora, conhecidos que te estimam, amigos que têm grande consideração por ti e filhos que te contam as alegrias de todos os dias da semana, numa refeição demorada, no domingo de cada semana…

Ouço-te dizer: “quem dá não pode dar sempre”. Agora é à empregada que revelas o teu sofrimento. Ouço-te dizer que, apesar de teres concretizado o teu projecto de vida, sentes que, de facto, ele não te preenche como seria previsível. Pousas o cigarro no cinzeiro e, no curto instante que se seguiu, apagá-lo. Vejo a fúria nas pontas dos dedos da mão direita.

Uma raiva contida que só tu conheces, que só tu sabes o quanto ela te atormenta, que só tu acreditas que possa ser possível guardá-la em ti para o resto da caminhada. Pergunto-me, quantas horas semi-conscientes e tardias como esta lhe vais dedicar?! Tu não sabes, nem a empregada do balcão (visivelmente saturada da tua história desinteressante) te pode dar a resposta que insistes em encontrar nos outros e não em ti.

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