Anotação sobre interacções sociais

16:32

«Dispunha-me a sair de vez em quando, sim, mas pelas mesmas razões de toda a gente: para vigiar o comportamento dos outros e saber como resistiam à vida. Era interessante assistir a um grupo de pessoas que não se conheciam serem atiradas para um mesma sala por razões sociais, a pretexto de uns anos ou de um jantar, e surpreendê-los a pouco e pouco a vencerem a resistência do desconhecido ou a preguiça do diferente, a tomarem contacto umas com as outras por obrigação, a vencerem os complexos ou a polirem as atitudes, a declinarem a participação nas conversas por falta de estímulo, ou a afirmarem-se social ou intelectualmente pelo humor, a cultura, a profissão, o relógio.

Era divertido observar quem se destacava imediatamente e quem se salientava só no fim da noite, assistir à disputa de dois “actores” pelo mesmo papel e o mesmo público, topar as investidas abortadas dos tímidos para contarem uma anedota, patinar com as tiradas certeiras dos reservados que desvalorizámos pelo aspecto e nos davam lições, aturar os palermas que se exibiam, as coquettes que investiam, os trágicos que se lamentavam ou os espirituosos que nos impediam de sair da nossa concha para experimentar a glória.

Era cansativo, mas também gratificante, aquele desafio de conquistar uma audiência que nada sabia a nosso respeito e se dispunha a aderir por sede de novidade, medir a extensão exacta das nossas inibições, apurar o que as potenciava ou eliminava, reconfirmar que a cultura dos outros nos coibia, que a sua inferioridade nos descontraía ou que o seu interesse por nós nos dava brilho e incentivava.

Daí que as relações sociais fossem tão irremediavelmente desgastantes. Com um invólucro de facilidade e descontracção, eram todavia responsáveis por incómodos e embaraços por vezes asfixiantes. Ter à frente alguém com quem não se consegue sintonizar ou cuja conversa nada nos inspira, alguém que fala sem parar ou de um silêncio impenetrável, alguém junto de quem as nossas chalaças morrem à nascença ou as melhores histórias perdem o interesse, alguém junto de quem nos sentimos invisíveis ou de que não nos é possível livrarmo-nos por cortesia, pode deixar-nos mais arrombados do que um mês de trabalho.»

Rita Ferro, in "Uma mulher não chora"

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