O Agora e o Antes

15:57

Por momentos, não me reconheço. Tenho, efectivamente, enormes dificuldades em reconhecer-me aqui. Li uma vez qualquer coisa que dizia que o ambiente em que passamos a maior parte do dia acaba por reflectir parte de nós. Eu creio que os efeitos são recíprocos…

Não consinto que me digam que estou diferente. Não, eu continuo a sentir-me a mesma de sempre, contudo sei que o meu comportamento quotidiano me desmente. Aqui não consigo sorrir de coração. Há qualquer coisa em mim que ordena que os meus lábios se esforcem por sorrir, mas meramente por uma questão de cortesia ou até por uma qualquer subtil empatia para com o destinatário.

Aqui, quando concretizo alguma tarefa não é com a devoção de quem se dedica a algo que lhe dá prazer. Tudo começa por um pequeno impulso aliado a uma forte motivação, que se vai dissipando à medida que olho à minha volta e só encontro olhares ávidos do meu insucesso, das minhas falhas, dos meus erros, das minhas capacidades.

Vou-me superando a cada dia! Quando perco a esperança, volto a semeá-la e encontro-a sempre à distância, sempre demasiado longe, mas acabo sempre por encontrá-la. No entanto, essa força de resgatar a esperança quando tudo que me rodeia se mostra tão adverso, começa a enfraquecer… Tal como tenho medo que isso aconteça, tenho pânico de não me reconhecer.

Neste mundo hostil, há sempre alguém atento aos nossos passos, esperando pelo momento oportuno para nos fazer cair. Há também aqueles a quem eu costumo designar de anjos que são os vigilantes permanentes que observam os que esperam para nos fazer cair. No momento da actuação fatal, eles estão lá para nos proteger. Se entretanto não foram a tempo de evitar a queda, conseguiram, pelo menos, que ela não fosse demasiado grave. É por isso que depois de cairmos no conhecimento de alguma verdade importante, que depois de cairmos no fracasso de um grande investimento, que depois de cairmos no fosso afectivo de ninguém, conseguimos erguer-nos, a custo e lentamente, mas conseguimos.

O tempo passa mais devagar quando se recupera de uma queda, mas os anjos continuam por aí a forçar-nos a sorrir. Tenho ainda medo que até esses anjos não me reconheçam. Mudei tanto desde que cheguei aqui que penso que se tiver de permanecer por aqui muito tempo, vou acabar mesmo por deixar de ser quem fui (ou quem sou ainda).

A pouco e pouco, o meu rosto tornou-se sisudo – expressão de uma mágoa calada, resultante da vossa indiferença. Também aos poucos fui perdendo o hábito de retribuir com boa educação. Ainda não aprendi completamente a responder com a antipatia dos egoístas, mas ando a treinar-me.

Agora evito o espelho, não por achar que estou mais gorda ou mais feia ou mais velha, mas sim porque a imagem é consideravelmente mais fria e mais distante do que antes. Há uma coisa que já há muito ninguém consegue… Ouvir-me uma gargalhada sonora, daquelas que antes ecoavam, no mínimo, meia dúzia de vezes por dia. Talvez seja a memória do tempo que vivi que me incentiva a encontrar a esperança e a ver os anjos esticarem-me a mão.

Não queria deixar de me reconhecer só por estar aqui, só por estar com vocês, só por estar neste ambiente abstracto e impessoal. Gostaria de ver o sol quando abro a persiana e saudá-lo com um sorriso, mas tenho os lábios endurecidos. Não encontro por aqui quem me mostre que é possível alguém conhecer-me... Agora sobram os fragmentos de um Antes que não volta.

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