Uma certa lembrança

17:09

Entrava naquela casa com paredes velhas e esburacadas. Ouvia o barulho dos meus passos no soalho e a minha voz a treinar uma saudação diferente, que saía sempre igual no tom... Recebias-me com uma certa cerimónia, que não escondia a admiração por me lembrar de te ir visitar.

Havia algo naquela casa que eu gostava… Uma serenidade de espírito e também o peso da solidão que te envelheceu o sorriso. Mas havia ali algo mais do que a tua presença, havia ali as tuas memórias, aquelas que nunca partilhaste com ninguém porque nunca ninguém esteve interessado em ouvir. Eu sei que devem ter sido muito felizes, daquelas que ainda conseguem fazer sorrir a alma depois de terem ficado condensadas num tempo que já se esqueceu. Sentia naquelas paredes a harmonia de um lar que não existe agora. Sentia o silêncio das horas mortas que passaram a ser todas as horas que fixavas a janela sem ver o mundo lá fora, sem mesmo desejar redescobri-lo.

E era ali, em cima daquela mesa de madeira, gasta pelas refeições que ficaram por tomar, coberta por uma toalha de linho amarelecido, que repousava uma série de objectos. Um - particularmente um - era irresistível para as minhas mãos, que sempre tinham que o segurar. Aquela caixinha, de um verde esbatido, tinha um perfume agradável, doce e persistente. Adorava aquele aroma, que algures para lá destas portas agora fechadas se há-de perder para sempre ou conservar-se naquela caixinha.

A caixinha inspiradora dos meus sonhos de criança, a caixinha que perfumava dias alegres em que as minhas pernas eram pequenas e tinha que me empoleirar na cadeira para chegar à mesa. Depois fui chegando à mesa sem me pôr em bicos de pés e comecei a abrir a caixinha com ternura e nostalgia, no lugar da curiosidade. Hoje, se a tivesse à minha frente, não a abriria, porque ela já não faz muito sentido sem tu aqui a dizeres para fechar rápido se não o cheiro desaparecia, embora ficasses bem contente por eu não perder o hábito de desafiar a tua autoridade. Essa caixinha da minha infância acabará um dia estragada por terceiros, sem que lhe atribuam a significação que, um dia, essa caixinha teve para mim.

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