Caminhos esquecidos

14:57

A noite cresce sobre o caminho desaparecido... Não é a escuridão que faz deste um local assustador, mas o abandono a que os que aqui cresceram o votaram. Hoje consagram, por aí, o status que conseguiram trepando pela escala da submissão conformista até ao ponto de viragem, ou seja, quando se tornaram pequenos imperadores e imperatrizes.

Destituídos da autoridade social, são mais frágeis que o vidro do cristal. Desabituaram-se de receber simpatia gratuita. Estão sempre de pé atrás quando estendem a mão opulenta, gorda, enfeitada com anéis de uns quantos quilates de ouro, para um mero cumprimento formal. São arrogantes para se protegerem, porém, a crueldade sem escrúpulos ou o desrespeito pela dignidade dos outros não têm justificações plausíveis.

Deixaram de saber saborear o doce embalo de uma criança no colo. Simulam sensações que não sentem por força da imagem que, desde o momento que daqui saíram, quiseram criar como se de uma obsessão se tratasse. Não se deixam tocar pelo carinho no seu estado puro. Têm que o filtrar pelos crivos da conveniência.

A noite toma conta deste caminho poeirento, cujas pedras ainda eram capazes de reconhecer os pés descalços dos meninos que as pisavam, em correrias precipitadas e eufóricas. Os mesmos meninos que hoje usam sapatos carrérimos muito engraxados, que já não lhes permitem correr.

Conduzem refastelados, em bancos revestidos com o melhor cabedal, brutas bombas, topos de gama, mas são incapazes de brincar aos carrinhos quando o filho suplica. Falam de marcas, cotações de bolsa, relações internacionais, eventos sociais, sem realmente acreditarem no que dizem, sem pensar realmente no que lhes saí da boca para fora.

Vivem numa redoma de vedetismo de quarteirão. Longe deste caminho escuro, perderam o rumo como nada faria prever... Não se permitem a ser naturais na expressão dos sentimentos. Tudo tem que ser com moderação. Os riscos de tão bem calculados desprendem-se da adrenalina. Cuida-se da reputação como da própria sobrevivência.

Não andam à chuva porque têm pânico de estragar o penteado que roubou uma hora no cabeleireiro e com marcação. Não conseguem admitir a delícia de um pão caseiro com azeitonas bem curadas, porque é mais chique importar qualquer coisa (cujo nome, por vezes, nem sabem pronunciar correctamente!) das cozinhas estrangeiras.

Não são espontâneos nos gestos nem nos passos. A dança do dia-a-dia tem que ser comedida nos movimentos como se estivesse uma plateia de paparazzis preparadíssimos para captar o mais pequeno percalço. Não falam alto por medo do que os vizinhos possam vir a comentar. Não cantam pela rua ao nascer do dia, depois de uma noite de farra. Não cumprimentam as empregadas que tratam da limpeza do escritório. Não respiram sem o ar condicionado. Não retribuem sequer o bom dia que o transeunte de idade avançada, solitário e rico, lhe dirige por cortesia.

Não se divertem, bamboleiam-se cheios de graça na desventura dos afectos. São gente séria, que não vive com a seriedade devida. Tentam permanentemente esquecer a textura áspera das pedras empoeiradas do caminho anoitecido. A aspereza do piso era compensada pela liberdade de puderem despir a alma, sem pudores, para o vazio deste local, agora entristecido e frio. Mas eles estão longe e não vão voltar a este caminho!

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