Infindável peregrinação

04:19

Vão em romaria. Uns por protocolo, outros por sentimento e ainda alguns por rebate de consciência. Depois de passadas as portas altas do cemitério, serpenteiam por entre os jazigos. Espezinham a paz silenciosa dos mortos. Falam tão alto...

Conversam entre si. Trocam lamentações. Recordam o quão virtuosas foram as existências ali sepultadas e o quão injusto o seu termo. O discurso repete-se, ano após ano, e, durante esse período, a romaria parece ganhar novo fôlego, um ânimo de tal modo frenético que extenua os rituais seculares. Já não sabem respeitar o silêncio latente das campas adormecidas.

Talvez todos procurem, nesta alegre romagem, não quebrar o cumprimento da tradição deste dia. Mas só isso! Não sussurram com o coração. Têm que falar, têm que se mexer, como se tivessem medo de ficar quietos e em silêncio; como se tivessem medo de, ao adoptar esse comportamento, eles próprios se afigurem aos mortos que hoje relembram. Despejam palavras em tom jovial, às quais os mortos, a seus pés, respondem com um sorriso mudo. Depositam velas acesas sobre os tampos de pedra que guardam a chama da vida já extinta.

Hoje, as portas do cemitério estão escancaradas. Amanhã, já o seu peso é demasiado para as empurrar e entrar. No dia de hoje, os cemitérios ocupam uma nota na agenda das pessoas. Afluem tantos, ao mesmo sítio, que descaracterizam o sentido da visita. Em passos curtos e apressados, movem-se entre este e aquele repouso eterno dos entes queridos para colocar arranjos de flores. Muitas flores, coloridas e frescas. Ainda que a beleza das mesmas já não possa ser apreciada pelas pessoas a quem as oferecem.

Poucos conseguem olhar por muito tempo para os nomes inscritos na pedra fria sem que um arrepio lhes percorra o coração. Ali é, efectivamente, a última morada física de um ser humano. Ali, terminaremos todos. Ali, está o protagonista de uma existência, sobre a qual já caiu o pano. Acabou-se o espectáculo porque se consumiram os dias, porque findaram as emoções, as ilusões, as pulsações. Não se ouviram aplausos da plateia, pois ninguém bate palmas à tristeza da perda. Com lágrimas vertidas para dentro, discretamente no meio do alarido dos romeiros, recuperam-se fragmentos da memória que tragam momentos partilhados.

Mas os romeiros não se calam. Estão impacientes. São cansativos e perturbadores da paz tranquila que afaga estes sepulcros vazios. Vazios, sim! Pois, a par do vazio da falta que sentimos, levamos connosco a essência de quem ali está.

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