Desfragmentos mnemónicos

04:20

Edifício novo, de cor branca, com a placa comemorativa da inauguração por sua excelência o Presidente da República bem à entrada. Corredor limpo. Agradável. Com luz. Ladeado por dois compartimentos. Paredes de vidro, sem respeitar a privacidade das refeições e o convívio das solidões não assumidas, empurradas para os subúrbios dos esquecimentos.

Gente que se movimenta de um lado para o outro, presta cuidados, disponibiliza atenção em troca de um sorriso igual. Contexto normal, quebrado pela consciência das necessidades que um dia poderemos sentir, pelas dependências que não insistiremos sequer retaliar, quanto mais combater...

Precisar de alguém para tomar banho, para comer, para caminhar é verdadeiramente assustador. O cenário desarma, mas fica para trás depois de percorrermos o mesmo corredor, só que no sentido inverso! O pior é ter alguém prestável, atencioso, a zelar pelo bem-estar, mas que não pode ajudar a resgatar memórias perdidas.

Fundo do corredor, voltar à esquerda e na sala em frente, ao canto, entre o armário encostado à parede e a cadeira de madeira nova, um vulto sentado. Cabelos brancos. Magreza pálida. Voz colocada no desespero dos minutos que não fazem parte das horas seguintes. Quer ir passear para a quinta que nunca teve. E insiste, quase desesperada.

Livrarmo-nos assim daquilo que um dia fomos por uma qualquer fatalidade incompreensível, incontrolável e imprevisível, é arrepiante. Perceber as memórias como construções lego: ordenadas, com cores vivas, montadas à velocidade da idade e, depois, facilmente, rapidamente, injustamente desagregadas.

Ela repete, repete, repete e volta a repetir a mesma frase. Perco o número de vezes que desejo nesse longo instante apagar aquela imagem, não projectar a sua possibilidade num futuro. Entristece-me saber que ela não tem malas com pensamentos, nem segredos nas gavetas, que tudo foi varrido por um esquecimento atroz e desumano.

Creio que não fui capaz de olhar para trás quando estava de saída... Aqueles minutos ressoam ainda horas depois, dias depois, com um já incontável número de percepções que um dia poderei deixar de lembrar...

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