O que restou...

04:49

No vazio da espera, conforto a dor com o meu silêncio. Enquanto aguardo neste corredor frio, pressinto as vidas e as mortes que estas paredes já assistiram. Assisto sem sentir a dor como minha. O verdadeiro sofrimento vem depois, quando as esperanças se calam e não se grita a solução para a cura.

Com os meus passos, feitos de reacção ao medo, percorro o espaço que me separa do teu quarto. Em olhares oblíquos perscruto a mortandade iminente. O teu corpo sem acção, apagou-te a voz, mas restou esse olhar cortante, dilacerante, que nos sacode as fraquezas.

Nestas horas que parecem anos, as emoções são enterradas vivas e
a dependência é uma palavra que me assusta. Não permiti a mim mesma acreditar no que me tentavam dizer. Pleonasmos de termos científicos foi a interpretação que fiz.

Wassily Kandinsky

Nestas alturas, um milagre recolhe as últimas súplicas de dias melhores. Ninguém tem o direito de nos arrancar o optimismo com que procuramos iludir-nos. Recusei-me até ao fim e a dor não foi maior por isso. Foi a única forma de sobreviver a esses dias sem me deixar sucumbir a eles.

Quando chegou o momento, fui obrigada a expatriar a réstia de esperança para o mais longínquo dos lugares da minha mente. A dor apoderou-se do coração ferido, apertando-o. Contudo, a última imagem, aquela que se deve guardar, tem que ser fiel a nós próprios, a nós num qualquer outro dia normal. Alistei a coragem à dor para enfrentar aquele olhar profundo de um corpo em agonia.

Olhei de frente. Parei. Empurrei as palavras que se entalaram na garganta e, no tom de voz que não era o meu, disse algo no qual também não acreditava, nem poderia acreditar, mas fi-lo porque o devia a ti. Pior que as palavras foi o simulacro de sorriso que expulsei.

Em contraste, uma lágrima, que caiu do teu rosto. Antes que tu pudesses ver as minhas, despedi-me de ti e virei costas àquele quarto, que se tornou local de peregrinação nos últimos tempos, testemunho da nossa preocupação e cuidado, átrio das visitas oficiais e dos que permaneceram.

Ao caminhar pelo corredor, em sentido inverso, não consigo mais reprimir o desespero que a tua última imagem me pregou no coração. Ouço o soluçar dos outros e a tentativa de conforto de alguém que se cruza comigo. Afasto-o porque já me conhece e sabe que vou chorar sozinha, livre das penas alheias, longe dos carinhos circunstanciais.

Hoje fico apenas a sentir as lágrimas agrestes que se me cravam no rosto, relembrando as vivências irrepetíveis que partilhámos, perdidas para sempre. No espelho do elevador sombrio, vejo o esquisso irreversível de quem já perdeu e ainda não soube como recuperar.

Desço sozinha e limpo as lágrimas. Abre-se a porta de metal. Enfrento a luz que entra pelos vidros sujos da sala de espera e deixo-a para trás. Comigo levo o pouco de ti que deixaste em mim.

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