No recanto da praça

04:18

Antes, enquanto esperava, pegava na caneta e rascunhava o que encontrasse mais a jeito. Nas mesas do café, roubava guardanapos e, naquele papel fragilizado e menosprezado, escrevia pensamentos súbitos, observações chegadas de rompante, emoções desfragmentadas.

Antes, enquanto observava uma paisagem, rabiscava numa folha rasgada do bloco já gasto, desenhando nas letras as impressões que ficavam, as percepções involuntárias, as inquietações vividas.

Antes, enquanto ouvia, mostrava o desinteresse cordial, tomando notas vãs numa folha de papel, despejava interpretações deturpadas, escrevia nas entrelinhas, desejava chegar ao fim.

Antes, enquanto tinha a cabeça ocupadíssima, trazia sempre a inspiração a tiracolo e as vivências múltiplas às costas, sem sentir o seu peso excessivo.

Antes, qualquer recanto servia de refúgio.

Hoje, penso não ter forças para aguentar o vazio que percorre a coluna vertebral dos dias.

Hoje, leio apenas os contornos de um cansaço injustificado.

Hoje, tenho os dedos atrofiados e as esferográficas sem tinta.

Hoje, desespero, não vejo e não escuto.

Hoje, riscos de autismo desenham-se no meu mundo.

Hoje, medo de não conseguir recuperar o antes para os amanhãs que se seguem, sempre vivos, luminosos, esperançosos e ainda assim tão intocáveis e tão distantes.

Hoje, qualquer praça serve de esconderijo.

You Might Also Like

1 apontamentos

Total de visualizações

Procurar no blogue