Às escuras

16:02

Se percorremos a casa sem carregar no interruptor quando, a altas horas da madrugada, assaltamos o frigorífico ou vamos à casa-de-banho, o sentido de orientação ressente-se. O que nos vale é irmos tacteando as paredes ou o facto de já sabermos o caminho de cor.

Num espaço qualquer podemos dar alguns passos às escuras, mas só até não conseguirmos dar com o interruptor mais próximo. Agora, como caminharíamos se os nossos olhos não vissem além do escuro? Como comeríamos? Como escolheríamos a roupa que vestimos? Como faríamos compras básicas? Como encontraríamos o que precisamos? Como apreciaríamos os contornos daqueles objectos que mais gostamos?

A experiência foi arrepiante. Quase de repente, tudo ficou submetido à escuridão. O jantar repousava no tabuleiro. No cérebro, uma ideia mental da ordem dos elementos, que se foi dissipando à medida que perdíamos a destreza. Percebemos, facilmente, que a nossa habilidade manual é muito reduzida, que os outros sentidos não estão nada apurados.

Resultado esperado: comida espalhada, dificuldades várias em mantê-la no prato, em cortar a carne, até no próprio acto de comer. Esvai-se o apetite ante a nossa desajeitada forma de estar à mesa. O paladar tem novas proporções, é a degustação com atenção.

A voz que nos fala ao ouvido ganha outra ressonância. Recuperamos a memória visual da pessoa, arriscamos um nome e com sorte conseguimos identificá-la. Notamos os diferentes tons e o estado de espírito em que a frase foi proferida.

Valorizamos o cheiro da chuva ou do perfume que usamos. Contudo, o toque é, sem dúvida, o que mais impressiona. Em cada centímetro de pele que é tocado inscreve-se um carimbo de sensações várias.

Se o mundo fosse apenas uma representação mental das coisas que os outros que vêem nos contam como seria? Desejaríamos ter olhos para ver os contornos reais dessas descrições? Ou bastaria uma alma sem vendas para desbravar até os mundos mais obscuros?

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