No reverso do rascunho esquecido

16:25

Folha de papel dobrada, entalada algures num bolso de calças usadas. Tu à minha frente. Atrás de ti, vultos à volta das mesas redondas de madeira preta. Havia algo a nublar a tua alegria habitual. O empregado aproximou-se e levou o nosso pedido. Também a pedido de uma pessoa em comum, ali estávamos, contentes pela ocasião. O pretexto: a página em branco para preencher com a mais recente experiência em conjunto.

Houve então um gesto inicial que me induziu em erro. Pegaste, energicamente, na esferográfica barata e tocaste a textura fina do papel. Julgava que a inspiração te jorrava dos dedos. Contudo, nem um minuto depois, viraste a folha e disseste apenas que não ia ser fácil. Na verdade, nenhum dos dois conseguiu escrever.

Reticentes, deixámos para o dia seguinte. Fiquei com as tuas ideias e com a tarefa de as juntar às minhas. A promessa de te enviar depois. Fomos falando de coisas banais, enganando a vontade íntima.

Saímos do café e embriagámo-nos com o breu da noite quente. Como se nos sentíssemos mais livres, conversámos por fim. Foi ao chegar às ruas iluminadas que confidenciaste a inquietação que te habitava. O que ouvi fez-me calcorrear do choque à incredulidade.

Ainda nesse estado inconfessado, disse-te para agires sem precipitações, para deixares que a calma fosse a principal coordenada dos teus pensamentos. Vi-te partir pela rua acima, talvez um pouco mais aliviado, mas com o coração duvidoso. Subi as escadas do mármore sujo e malcheiroso, reflectindo sobre tudo o que foi dito. Já enroscada no sofá, com a temperatura nocturna a fazer-me cócegas nos pés descalços, peguei na folha. Desdobrei-a e, à frente dos meus olhos, meia dúzia de palavras rabiscadas:

16 de Maio de 2006

Querido Diário:
Hoje fez sol e o Natal nunca mais chega. Estou com calor.


Ri-me. Verdadeiramente. Naquele instante, defronte à televisão desligada a cronometrar os minutos da madrugada, quis ter-te ali para ouvires esse riso. E nunca partilhei isto contigo.

Afinal, hoje, três anos depois deste episódio, continuo a ter motivos para registar no diário as velhas memórias e as oportunidades do passado recente. Seja na véspera do Natal ou no final do Verão, em casa ou num bar barulhento, sozinhos ou envoltos numa pequena multidão, pessoalmente ou através deste inimigo das horas vagas, continuamos presentes. Entre nós, independentemente das circunstâncias, há sempre um qualquer tema de conversa.

Apesar disso, é daqueles diálogos, com a dinâmica cativante de ouvir, interromper, rir, falar, que tenho uma saudade imensa. Nesses tempos de escola, desfiávamos minutos com histórias ou discussões clubistas. Seguia de perto a tua caligrafia encavalitada. Agora, contento-me com as mensagens que digitamos quase diariamente sobre os dias apressados que vivemos.

Com o tempo, o tempo foi sendo cada vez menos para podermos estar juntos sem pressas. E hoje vemo-nos no Verão e sentimos o frio desses Invernos idos. O que nos aquece é a alegria impressa em cada reencontro, por mais fugaz que ele seja.

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