Apelo vindo da penumbra

03:00

Chego a casa, não muito tarde. Decido deitar-me e tentar adormecer. Porém, eis que, ao passar no corredor fracamente iluminado, chega-me aos ouvidos o choro da esferográfica que se solta na escuridão da sala.

Para lhe limpar as lágrimas, levo também o bloco de notas, devolvendo-lhes, assim, a companhia diurna. É no papel, que agora geme, que afogo as mágoas da caneta cansada e as confundo com as minhas.

Se não fosse uma caneta banal, cor azul e tampa roída, poderia escrever um poema de amor ou ensaiar uma prosa poética. Com tinta-da-china, uma caligrafia atinada e esse esmero literário, escreveria alguma coisa, sei lá, menos grosseira.

Todavia, com esta esferográfica trivial, registo as esperanças fugidias que os dias me sequestram. Quando as liberto vêm enfraquecidas e receosas. Registo, também, os medos infundados que se baloiçam nos ponteiros do relógio e as alegrias idas. Quando o telefonema termina e crava um rasto de saudades.

A culpa é da caneta que, sem qualquer esforço de personificação, é a castradora da minha liberdade e quer dar azo às suas supostas competências criativas. Então, atrapalhada, apressada e sem jeito, encavalita as letras, esquece-se dos acentos, constrói longas frases, pontua mal, faz maratonas pelas margens do papel.

Eu vou permitindo que os meus dedos sejam comandados e, sem resistência, não lhe seguram o ímpeto. Ela não pára! Parece que tem vida própria, um novo alento neste início de madrugada.

Soletra-me que os dias não são meus nem eu lhes pertenço, que sou livre dessa inexorabilidade cronológica, porque posso saltar de ontem para amanhã, desaproveitando (ou não!) o impulso que o hoje me dá.

Não compreendo tanta filosofia de gaveta. Acho que a caneta está perturbada porque lhe incomodei o sono quando entrei na minha própria casa. Enquanto as pálpebras não se cerram, fico a reler o que está nas entrelinhas.

António Bandeira

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