Domícilio a céu aberto

03:02

Manhã fria de um domingo que existiu no tempo gelado. Ergo-me a custo e sem vontade de me despedir. Puxo os lençóis devagarinho e avanço pela escuridão do quarto. Não quero acordar o ruído. Apetece-me ir respirar o movimento das ruas, sentir a indiferença dos transeuntes e fundir-me nela também.

Já caminho há algum tempo. Olho para as lojas a piscar, sem vontade de entrar. Muitas estão fechadas. Pois é, esqueci-me desse pormenor e ainda bem. Sigo em frente, acariciada por aquilo a que muitos, por aqui, chamam frio.

O que sinto cá dentro protege-me das intempéries do exterior, como se vestisse pele de lobo. Lá ao fundo, a estação de chegadas e partidas, com o barulho ainda demasiado longe. Caminho distraída, ao ponto de te ver e quase ter que olhar para trás.

Estavas, então, num cantinho, de ombro direito encostado à parede esbranquiçada da loja de luzes apagadas. Roupa suja, coberta por um casaco escuro e remendado, tapa-te o corpo, deixando as mãos de unhas grandes a descoberto.

Tens a cabeça ligeiramente curvada sobre o objecto que há-de nascer dessas mesmas mãos. O cabelo comprido é acinzentado e oleoso. Seguras a agulha e vais cruzando a linha branca, absorto e mudo, sem levantar os olhos à passagem de alguém.

E aquilo é uma observação que quase perdi, por não sentir frio. A rua estava vazia e, naquele momento, ela era toda tua e eu, inadvertidamente, invadi-a. Os meus passos seguiram o trajecto indefinido e, na cabeça, ficou o recorte do teu gesto e a imaginação dos olhos que não cheguei a ver.


Ronald Wilkinson

Senti, então, o frio desse domingo. E, mais à frente, ao mudar de direcção para entrar na avenida larga e movimentada, eis que cai uma verdadeira enxurrada. Praguejo por ter ficado encharcada de repente e envergonho-me, porque penso em ti. Terás tu feito o mesmo? Ou, antes, terás estendido as mãos para mostrar à chuva os fios entrelaçados?

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