Urbanidades

08:32

Vou pela rua e ouço alguém apregoar a sorte, alguém a quem a sorte não entendeu contemplar. Só tem duas possibilidades que agita nas mãos. O cauteleiro que apregoa alto procura passar o testemunho numa rua apinhada de gente apeada.

O vaivém de cima para baixo e de baixo para cima subestima a sua visibilidade. Tenta chamar a atenção com o braço erguido. A maré rasa de pessoal na rua e ele de mão no ar, com as lotarias na mão. Completamente arrasado pela indiferença, reduzido à sua dimensão. Olho para trás e vejo aquelas mãos a abanar. Ficam-me as repercussões daquele gesto repetido.

Entretanto, aproximo-me de uma exposição ao ar livre, em frente ao centro comercial. Há traços interessantes, menosprezados com olhares de soslaio. São poucos aqueles que param.

Lá ao fundo, há uma música tranquila. Ela segura um pequeno instrumento infantil e bate o pé, com suavidade, completamente fora do ritmo. Toca e sopra ao mesmo tempo, conseguindo uma sonoridade realmente agradável. Ela, estrangeira e cega, está sentada e descomplexada. Os outros evitam olhá-la directamente. Tal como eu. Pergunto-me como conseguirá dar cor àqueles acordes, tocar em sustenido as notas salteadas e ao improviso...


Metros à frente, duas imigrantes discutem. Estão furiosas uma com a outra, embora o idioma seja ininteligível. Causam espanto, olhares de reprovação, abanos de cabeça, encolher de ombros. Meia hora depois, quando percorro a rua no sentido contrário, vejo-as no mesmo sítio, Porém, agora, uma ao lado da outra, na mais absoluta paz.

Mais adiante, ao dobrar uma esquina, um rosto novo nos trajes andrajosos. Ao lado, repousa um copo de plástico lívido, que fumega. Nesse mesmo instante, passam duas pombas. Sobrevoam baixinho para que ambos reparemos nelas. Não nos cruzarmos com o olhar, porque fixo apenas olho o líquido quente.

Defronte ao semáforo, os transeuntes desesperam por ver piscar o bonequinho que lhes dará permissão para avançar. Para trás, ficou a lotaria e o cauteleiro inválido, como ficaram a música da imigrante cega ou as explicações do pintor de rua que vende os seus trabalhos ao desbarato.

Já longe, o 7 e o 24 ainda se ouviam… A sorte, hoje, parece demorar-se...

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