O rei com pés de lama

19:01

A cadeira almofada, protótipo dos tronos modernos, aguenta o peso das banhas flácidas, enquanto ele passa os dias inventando que faz, numa simulação absurda da utilidade das suas funções.

Ele não sabe escrever e socorre-se do computador, que se nega a compreendê-lo. As teclas são pressionadas com uma velocidade domingueira. Os ficheiros são guardados sem saber como ou onde. Quando precisa de ajuda, chama o súbdito e, para disfarçar a sua ignorância, humilha-o. Enquanto o outro descobre as soluções e executa as tarefas que não lhe dizem respeito, ele continua acomodado no cadeirão, de braços flectidos e o olhar em vénia para uma máquina que não domina.

Ele é cínico ao ponto de usar falinhas mansas para ficar bem no retrato de família, mas assim que o fotógrafo vira costas, é ver a fera enjaulada no cubículo que tomou como seu. Chega cedo e vai embora tarde. Passa todo o tempo ali encafuado, lançando olhares de esguelha a quem entra e sai.

As cortesias ficam à responsabilidade do súbdito, que dá conta do recado com orgulho e satisfação. A posteriori, ele vasculha tudo para lhe poder apontar um qualquer desvio da linha de orientação que se pressupõe sem ter sido alguma vez assumida e comunicada. O súbdito tem uma paciência santa, remete-se ao silêncio, anda na sua vida. Só quando ele grita é que a paz se esvai.

Um dia, ele chamou-o para o dispensar. Assim, sem penas nem maneiras. O súbdito acatou a decisão e saiu, em passos firmes, pela porta grande. Atrás de si deixou uma sombra gigantesca.

Ele nunca se envergonhou com essa atitude incompreensível, mas, a partir dali, eu olho sempre com descrédito e mansidão, devolvendo palavras roucas.

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