Madrugada escura

07:44

Gosta de vigiar a noite dos que vagueiam fora de horas, pelas ruas fracamente iluminadas. Sente um prazer inexplicável quando as sombras humanas se vão deitar. Fica ali, num sossego inquieto.

O cigarro pauta-lhe o momento, depois de a preocupação se dissipar. O fumo que se dispersa pela sala desarrumada empurra-lhe a tristeza que é ser capaz de sentir nostalgia. Daquele engavetada para os bolsos de trás das calças com que vestia a memória nos dias invernosos.

Hoje sabe que o som da água a cair continua lá, que os mosaicos da varanda permanecem partidos, que a solidão dos prédios se tornou residente efectivo sem pagar rendas. Hoje, felizmente, só lhe falta o olhar a sobrevoar isso tudo.

Nesses tempos, cada dia roubava-lhe um pouco mais do que trazia e, simultaneamente, deixava um peso colossal. Havia betão espalhado por cima do peito quente. Lembra-se de olhar obsessivamente para o relógio desdenhoso.

Fitou aquelas paredes esquálidas sem se cansar. Desesperou com os ruídos mais improváveis que perturbavam o silêncio. Ficava contente com os amigos de sempre que ligavam às horas aparentemente mais estranhas, nos segundos certeiros e diziam tudo. Havia essa profusão de palavras soltas para a madrugada como se competissem para chegar à meta inexistente.

Quando essas excepções aconteciam, pendurava um sorriso na mala que ficava debaixo da cama para sair ao fim-de-semana. Só o mudava de sítio para o levar consigo. Entalava-o no meio de um livro que nunca terminaria de ler, porque falava de muitos dias de solidão. Protegia-o, assim, das curvas e contracurvas da viagem e quando chegava ao destino, deixava que o abraçasse para ir ao seu encontro.

Hoje, o telemóvel toca, mas já não está na varanda, deixando que a tristeza arrefecesse. Não é o mesmo tom com alegria em várias escalas. Hoje, és tu que talvez precises que ele te ligue, mas fica perdido ao chegar à última tecla. Hoje, ainda há madrugadas que se esgueiram lá para fora, porém, só o cigarro se mantém fiel à marca. E os dedos, esses, fecham-se sobre si próprios para segurar o cobertor e voltar à procura da imperturbalidade de um sono.

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