(Im)probabilidades

10:17

Estava cabisbaixo, braços recostados sobre o tampo da mesa, mãos a embalar a caneta. Aproximei-me, sem que notasse a minha presença. Percebi o exílio do presente, dessa angústia latente a cada perda.

Fiquei a vigiá-lo, embrulhada na penumbra da sala. Noite fora, ele e o papel, num cúmplice diálogo de surdos. Extenuado pelas lágrimas incontroláveis, acabou por adormecer, ali mesmo.

As minhas pernas dormentes caminharam na sua direcção. Os meus olhos ousaram espreitar e pude ler-lhe o quão visceral era, afinal, aquela estranha relação:

«Se nunca me tivesse cruzado contigo, talvez hoje não sentisse esta paz absurda que chega a incomodar-me. Era reconfortante saber que estavas lá, mas nunca quis habituar-me a isso como uma certeza incontrolável. Agora, abrigo-me debaixo dos beirais dos telhados alheios na esperança de que a chuva que provocaste não me encharque as pontas dos dedos dos pés. Quero-os secos para quando chegar à tua beira.

E se nunca tiver tempo ou coragem ou oportunidade para confessar a falta que a tua distância me faz? Terei palavras para te desenhar o mundo imperfeito, braços para te carregar as incertezas a que te amarras, coração para te agasalhar nas horas frias do Verão.

Se nunca mais voltares, assusta-me a hipótese de saber que perdi para sempre o teu abraço apertado, o teu olhar desafiador, a alvura do teu sorriso e que estou irremediavelmente sozinho.»



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