Estertor

15:09

Num último fôlego de vida, gritas os afectos, expulsas os medos, desesperas com a tragicidade que se abateu sobre ti. Nos corredores, corpos aflitos num movimento incompreensível. Uma agitação ilusória, sem sucesso final.

No quarto, os gestos inúteis e os teus olhos cada vez mais mortiços. Explicam-lhe, em termos científicos, uma realidade inevitável, legitimando esse desespero dilacerante de não saber como viver os últimos instantes.

O que gostaria de registar, em último lugar, nas chapas mnemónicas? Será o rosto dos teus filhos? O sorriso dos teus netos? O abraço de quem te trouxe pela mão durante anos a fio? A mão terna do teu melhor amigo? A solicitude do enfermeiro do turno da tarde?

Será que pensas no arco-íris? No último jantar em família? Na noite em que te arrancaram de casa, com urgência? No frio que te imobiliza os pés deformados? Na escola onde aprendeste a escrever? No sonho que não terás tempo de confessar? Nas palavras que te arrependeste de dizer? No medo do que acontecerá depois do coração se recusar a bater?

As batas brancas abeiram-se da tua cama. Atropelam-se. Tentam de tudo para não te perder de vez. O som da máquina, ininterrupto e inequívoco e indesejável. Caem lágrimas num desamparo que começa agora. Recusas escusadas, corações em colapso, abandono forçado do edifício.

Por fim, o teu corpo inerte jaz morto no sossego silencioso da igreja, entrecortado pelos soluços e choros de quem vai sentir a tua falta nos amanhãs que se vão seguir ao dia de amanhã. Há um cheiro intenso a flores, quase como se fosse Primavera, mas o que aí vem não é mais do que uma noite de invernia interminável.

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