Vício jovial

15:45

Despede-se o dia pela janela rectangular do café onde nos reunimos. Conversamos sobre temas vários, do banal ao essencial, cimentando os laços desapertados que conservamos ao longo dos anos.

No meio de tudo, repescamos memórias e atiramos projecções. Há sempre risos, muitos e genuínos. Entretanto uma de nós comenta que “quem ri muito vive mais”. Essas palavras fizeram ricochete.

De facto, não há melhor maneira de encarar o que nos acontece com um sorriso discreto. Mesmo perante os dramas inadiáveis e as inevitáveis tragédias, é seguro ostentar para dentro um sorriso tirano, carregado de desdém.

Sim, gosto de me rir quando alguém diz algo inesperado e engraçado, revelando uma espontaneidade que procuramos, a todo o custo, abafar. Tenho que rir quando alguém tem um comportamento menos puritano e, depois, pede desculpas só porque fica bem.

E há aqueles risos de pena perante alguém que se diz tão bom, tão inteligente, tão supra sumo (de coisa nenhuma). É que basta colocar-lhe uma pergunta básica e deliciarmo-nos com aquele ar de embaraço de quem dá a resposta correcta sem qualquer convicção de ter acertado.

Rio-me também da pobreza de espírito de algumas pessoas. Rio-me da hipocrisia dos tidos como bons costumes que desprezam as emoções para que os protocolos vigorem inequivocamente.

Rio-me até de mim mesma, quando acho piada a algo que me disseram, quando oiço palavras sem cabimento e permito que as mesmas tenham tantas repercussões internas, quando me descrevem como um simulacro da realidade que não chegam a conhecer, quando aplaudem fingidamente uma qualquer acção positiva.

Habituei-me a isso, porque o riso também se pode tornar um culto, um vício sem desintoxicação conhecida (nem desejável).

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