Escalas

18:19


Ontem apeteceu-me interromper a viagem. Desejei não ter que levantar a âncora e esquecer-me das coordenadas distorcidas que os outros me impõem. Quis ficar ali, só até que as vagas do tumulto diário amainassem.

É que ali, algures onde o mundo começa, o tempo tem o ritmo que acerta os reencontros e a vida parece só saber correr de feição. Ali, o telemóvel ou a televisão caem em desuso. Ali, há um silêncio sábio colado às palavras ditas com naturalidade. Ali, vive-se mais perto do coração.  

Ali, falam-me de um tempo e de uma sociedade que não conheci, mas que gostaria de ter experimentado. As peripécias, as agruras, as incertezas e as partilhas que não me pertencem acabam por vir no convés. Contudo, dizem-me, um dia, tudo à volta do farol mudou. A orla marítima, as habitações de betão e as pessoas que percorrem a marginal foram perdendo os traços da diferença. É então a minha vez de ouvir falar de uma realidade que não estranho: menos humana, mais apressada, menos honesta, mais feroz, menos séria, mais injusta. 

Depois do rol de desgraças, brindamos a vida transformada em curto-circuito com gargalhadas vindas de dentro. E nessa postura, deixamos reinar a ironia. Continuamos a abraçar as causas que parecem esquecidas e os princípios varridos para debaixo do tapete que muitos pisam para tentar subir a lugar algum. Só ele, altivo e seguro de si, se mantém orgulhoso da sua verticalidade. 

Também nós temos esse brio nas impressões sentimentais que deixamos nas pessoas, nos lugares, nos objectos e nos Outonos que passam. Somos indiferentes às tentativas de inverter os valores de berço em troca de benefícios pontuais. Não sobrepomos o dinheiro que mais horas extraordinários nos possam render ao privilégio de acompanhar o crescimento dos nossos filhos ou o envelhecimento dos nossos progenitores. Assistimos desencantados à descaracterização ou formatação de identidades, mas não nos deixamos intimidar por essa ameaça que parece salvaguardar a normalidade social e a integração em círculos de referência.

Não somos guardiões da boa moral e dos bons costumes, mas militantes das conversas que rasgam as madrugadas, das existências que se deixam enamorar pela maresia e da esperança em quem ainda pode trazer a mudança pela mão, sem retorcer os ideais.

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