Dádivas & Dívidas

18:41

Nas contas do destino, ele facturou e endividou-se. No ajustar dos números, o saldo pende para o positivo. Sempre viveu nessa vaidade vociferante de fazer as coisas respeitando a dignidade das transacções, honrando a honestidade dos negócios.

Contudo, sempre viveu acima dos sonhos, em chãos falsos, pisando areias movediças. Um dia, sem dar conta, caiu e bateu no fundo. Sarapantado, olhou à volta, tentando reequilibrar a consciência dos factos.

Pela primeira vez na vida, percebeu onde estava e sentiu-se encurralado. Não lhe faltaram mãos amigas a acenar-lhe, ao longe, endereçando sorrisos de pena. Não lhe faltou um rol de apelos implícitos à desistência.


Reticente, não cruzou nem baixou os braços. Tentou dar a volta por cima, mas em vão. Esforçou-se sem dar tréguas e só no limiar do consentimento à desistência, eis que a perspectiva muda.

Então, ele vê a alavanca, ali, a meia dúzia de metros e, no entanto, inalcançável. Há rostos conhecidos que passam pelo seu corpo andrajoso e extenuado e olham-no do penhasco da indiferença.

Pensa no rosário das ambições passadas. Recorda a casa cheia, com os amigos à volta da mesa, as férias exóticas, a família unida, as noites que deixaram histórias. Agora, resta-lhe o frio desta tarde de Outono, onde esvoaçam folhas secas e frágeis.

Na sua direcção, abre-se uma mão jovem, bonita, limpa, convidando a içar-se. O medo demora-lhe a acção do aperto. Envergonhado e enternecido, prefere fitar os pés. Agradece, em silêncio, ao benfeitor desconhecido e prossegue sem esquecer essa eterna dádiva.

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