Ditado do coração

19:21

Ele tinha medo, desse que nos recusamos a acreditar que exista. Ele não conseguia ter o discernimento para perceber que esse medo lhe escravizava a liberdade, lhe intimidava as intenções, lhe arredava os trunfos.

Certa tarde, o professor dessa grande sala com mesas de madeira imaginárias mostrou-lhe o que tinha que fazer. Exigiu algum recato e deu-lhe um papel para a mão insegura. Depois, começou o exercício: fez um ditado com o coração.

Ele, atento e trocista, foi escrevinhando desinteressado. A meio e de rompante, o professor parou e ordenou que terminasse a história. Ele quis abandonar a tarefa, com medo de falhar a missão.

Contudo, o mestre que não se importava com os erros ortográficos ou sintácticos, que desvalorizava os desacertos da caligrafia, que se esquecia de verificar se estava escrito a lápis ou a esferográfica, abanou a cabeça. “É sempre mais fácil escrever com o coração. Tens que descobrir a responsabilidade de o fazer sob a vigilância, apertada e silenciosa, dos sentimentos, pois ela não te permitirá fugas ou escapes fortuitos à verdade”, disse-lhe antes de virar costas.


Ele foi reduzindo as letras aos ditames que vinham de dentro. Sentiu-se esvaziado, mais pobre até. Todavia, ultrapassado o impacto dessa primeira percepção, nunca mais parou de escrever porque percebeu que tudo não passaria de um texto inacabado num livro branco, como aquele que existia antigamente nas escolas, que passava de mão em mão, para que as crianças continuassem a projectar histórias com finais felizes.

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