Micro-mundos

06:33

Virara as costas, resoluta. Caminhava, segura e serenamente, para a porta, a porta do seu micro-mundo, como um dia alguém lhe disse em tom irónico. Viveu muito tempo (quase até se esquecer das datas) nesse mundo subalterno. Vinha cá fora, respirava o que de mau havia e guardava apenas o que disso restava. Tentava filtrar, reciclar, reavaliar, rejeitar, reconstituir, porque desejava carregar só o que, aos seus olhos, tinha alguma importância.

Queria levar consigo pedaços dessa teia gigante onde todos se movem como matraquilhos de um jogo inacabado e onde as faltas não existem e onde as regras são feitas à medida de cada jogador e onde a pressão do público inexistente é o que mais conta. Ela gostava de ser o matraquilho torto, encostado à direita, já sem uma das pernas, que tem um papel secundário no resultado do jogo. Ela gostava sobretudo de passar despercebida.

Mas raramente o conseguia, porque era soberana nas suas decisões, nas suas opções, nas suas crenças, nas suas fraquezas, nos seus silêncios, nos seus sonhos. E depois vivia refugiada em si, sem que percebessem as fronteiras escrupulosamente respeitadas.


Quando batia a porta do seu micro-mundo, ficava na companhia das palavras coladas em verso por nomes que todos conheciam, mas que ela desejava ter como amigos íntimos. Num solfejo de quietude, escrevia o que lhe ia na alma e na ambição.

Não achava muita piada quando lhe batiam à porta, madrugada dentro, com vontade de conversar. Logo ela que prezava tanto o silêncio escondido nos ângulos ocultos dos gestos. Porém, essa ingrata capacidade de negar obrigava-a a ceder, pacientemente.

Todos queriam espreitar o seu micro-mundo, as cores com que ela o pintava, as texturas com que as paredes se revestiam, os quadros que se perfilavam ao canto, os livros à espera de um par de mãos ansiosas por lhes sentir o aroma.

Contudo, ela não permitia que se demorassem além do estritamente necessário. Discretamente, seguia-se a expulsão. Ali, no seu micro-mundo, ela era imperatriz, escrava, destemida, perdedora, receosa, menina, altiva, meiga, mais ela.

Para ali, só trazia o bom ou pelo menos o que ela entendia como tal. Guardava as melhores memórias, coleccionava os amigos de abraço inexplicável, os laços feitos de fio de missanga, os cobertores de fotografias com sorrisos não fotografáveis, os cd’s com músicas partilhadas, as traquinices cúmplices, as conversas de coração aberto.

Ali, o mundo era retalhado à medida dos seus ideais, pela escala dos seus valores, arquitectado à escala multicolor da perfeição. Ali, ela era apenas ela, sem roupagens nem escudos, sem cavalos nem batalhas. Ali, era ela descalça, com um livro de vida entre as mãos sonhadoras.

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